Augusto Deodato Guerreiro
. Doutor em Ciências da Comunicação, Especialidade Comunicação e Cultura, pela Universidade Nova de Lisboa;
. Professor titular de «Teorias e Modelos da Comunicação», «Semiótica», «Organização e Sistemas de Informação» e «Teorias e Modelos de Análise da Comunicação» no Departamento de Ciências da Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa.
PALAVRAS-CHAVE:
Imagem Humana. Comunicação. Cultura. Inclusão Sociocomunicacional.
RESUMO:
É a nossa imagem, na película que a suporta, que promove a nossa aceitação ou exclusão na sociedade, sendo pela importância e pelo marketing que imprimirmos à significação do nosso corpo que nos conseguiremos sentir incluídos ou excluídos nos planos comunicacional, social e em todos os domínios. Sublinham a nossa personalidade, em regra, o rosto e a silhueta como cartão de visita, o corte de cabelo, o penteado e os óculos que usamos ou os sapatos que calçamos, a indumentária que exibimos, a qual também pode servir, se necessário, para encobrir dos outros o desconforto do nosso corpo, sendo adicionais que marcam eventualmente o nosso carácter. O prazer ou a tortura diária que podemos sentir ao levantarmo-nos em cada manhã, procurando no guarda-fatos o que devemos vestir para ocultar, disfarçar ou evidenciar algo que se prende com a nossa imagem, é uma forma de assumirmos ou não o corpo que temos, com todas as formas bem ou mal definidas, funcional ou disfuncional, mascarando, inclusive, a amplitude de humores com que acordamos ou convivemos. Sentindo-nos livres ou condicionados com a relação que temos com o nosso corpo, a roupa que vestimos e a maneira como a usamos revela sempre uma linguagem própria que tem a ver com o nosso estado de espírito, bem como, em geral, com os códigos sociais vigentes, quer seja no emprego, quer seja nas diversões, assinalando um estilo através das cores e dos padrões dos tecidos com que nos ataviamos. A questão da beleza associada a uma imagem cuidada tem grande preponderância mesmo noutros domínios, pois sabemos que a aparência é importante não só na dimensão da atracção física, como em muitos outros aspectos da nossa vida. Aliás, em qualquer relação que estabelecemos, o problema da aparência sempre presente, seja numa entrevista para conseguir um emprego ou para promoção na carreira, seja noutras circunstâncias de natureza social, somos avaliados desde logo pela impressão que a nossa aparência provoca.
FUNDAMENTAÇÃO
Para obviar à realidade enunciada no Resumo, que simultaneamente tem vindo a ser instigadora da promoção do descrédito em pessoas e respectivas potencialidades, os cidadãos com disfunções sensoriais, motoras, cognitivas e outras, estão incumbidos de uma missão no mundo, tão complexa e difícil, quanto meritória e frutífera para o progresso e desenvolvimento global da humanidade. Têm que cultivar e interiorizar mais uma virtude: a capacidade para gerirem as suas dificuldades específicas e potencialidades, e, ao mesmo tempo, a incompreensão ou ignorância dos outros cidadãos, escorreitos. «Não podemos evitar que os pássaros da tristeza sobrevoem as nossas cabeças, mas podemos impedir que façam ninho nos nossos cabelos» (provérbio chinês). É com inteligência e militância, prudência e tolerância, solidariedade e esperança que poderão impedir o fomento e generalização de conceitos absurdos e sem fundamentação de natureza nenhuma, em favor do progresso aos mais diversos níveis, promovendo mais-valias no sentido de se acessibilizar cada vez mais o mundo a todos os cidadãos, sem excepções.
Todavia, e reforçando a nossa convicção em mais um provérbio chinês, «antes de indicares a tarefa de mudar o mundo, examina primeiro três vezes a tua própria casa». Se, com determinação, conseguirmos ser donos da nossa vontade e escravos da nossa consciência (secundando Aristóteles, cª 384 ou 383-322 a.C.), o nosso corpo, ainda que inamovível pela acção do nosso pensamento e do nosso querer, nunca nos molestará ou amputará o espírito, os grandes valores morais e cívicos, o triunfo das intrínsecas capacidades concertadamente articuladas para a realização de coisas.
A inestética ou degradação de um qualquer imóvel habitado por seres humanos não pode induzir-nos no erro de que, lá dentro, tudo é sórdido, nauseabundo, tétrico, amorfo e inexpressivo. Da mesma forma que, quando olhamos alguém corpóreo portador de uma ou mais deficiências, não podemos inferir que, lá dentro, tudo é decrépito e funesto, abstruso e revolta, que só há um mundo inerme e ausente de valores cognitivos, de acção volitiva, de alegria e felicidade. As realidades e a-realidades irregulares não são tão monstras assim. Segundo uma velha máxima imputada a Confúcio (551-479 a.C.), «nada, mas nada do que acontece connosco tem metade da importância que nós lhe atribuímos à primeira vista». Temos que tornar mais consistente a nossa estrutura intrínseca para mais facilmente vencermos as obstruções condicionantes ou impeditivas da inclusão das diferenças. Parafraseando Agostinho da Silva (1906-1996), não precisamos ser originais, basta que sejamos verdadeiros. Os cidadãos portadores de deficiência têm que ser muito seguros e conscientes em todos os passos que dão, sem vacilações nem erros, traduzindo-se (sempre) o seu desempenho no progresso (natural) da ampliação do esclarecimento e entendimento dos outros cidadãos.
São os procedimentos dignos, desde o berço, e as consequentes interacções humanas que originam a formação de personalidades e condutas individuais e sociais, facultando e intensificando, como precisou Daniel de Sousa (1915-1989), a assimilação de conceitos por aprendizagem, treino, mera comunicação em convívio social, teorização, puro raciocínio. E sabemos que a aprendizagem se pode traduzir numa especialização hemisférica, o que pressupõe uma certa plasticidade cortical, sendo o hemisfério esquerdo a zona especializada da linguagem, da matemática, da análise e da palavra, E o hemisfério direito, a zona especializada da rima, da música, da simultaneidade e da imagem (Fonseca, 1999). é a experiência e a ampliação cultural, no espaço e no tempo, que nos faz substancializar, redimensionar e sedimentar o pensamento e os saberes. A cultura «é uma invenção ou, no mínimo, uma construção e artefacto histórico», e o homem «produz cultura tão naturalmente como as abelhas produzem o mel ou as aranhas as suas teias» (Miranda, 2002: p. 58). Mas «é a cultura vigente que condiciona a maneira de ver um objecto, determina as condições de possibilidade do surgimento de um novo objectivo científico, uma vez que o objecto de uma ciência nunca é dado pela natureza, mas é construído pela cultura.» (Rosário, 1996: p. 9).
De facto, é a cultura que nos ilumina, que nos disciplina e que nos engrandece, não obstante determinadas tipologias vigentes que nos podem cercear valores. Só a natureza faz coisas admiráveis em troca de nada. Nós, nem tudo. Quando semeamos, queremos colher. Até se diz que nunca damos ponto sem nó. Seja como for, esperamos sempre qualquer devolução, ainda que de forma ínfima, de algo que procuramos nas coisas. Nem que seja uma simples troca simbólica de cortesia.
Mas sendo mais incisivos, todos temos uma missão no mundo: desfazer equívocos, fazendo exorcismos de fantasmas existentes nas mentes mais herméticas, e fomentar estratégias e metodologias que ajudem a elevar e a consolidar os grandes valores humanos e a intercompreensão nas diferenças que nos unem, como seres humanos, independentemente dos desafios ou multidesafios que afectem o nosso corpo, tornando-o, por vezes, um peso uniformemente acentuado na família, nos grupos, na escola e na sociedade. Os portadores destes desafios (ou diferenças) devem impor-se como pessoas que, inequivocamente o são, apenas condicionados ou impedidos nalguns domínios funcionais e até cognitivos pela disfunção sensorial, motora ou outra, que possuam.
Todos nós sabemos que o valor informativo de uma qualquer realidade vai diminuindo o seu impacto junto das populações à medida que se vai integrando no universo de saberes aceite pela sociedade. Na realidade, a simpática adolescente judia perseguida pela intolerância abominável dos nazis, Anne Frank (1929-1945), tinha razão ao asseverar que «todos temos dentro de nós uma Boa Nova! A Boa Nova é que não sabemos realmente quão grandes podemos ser, o muito que podemos amar, o muito que podemos alcançar, e a imensa riqueza do nosso potencial». E, efectivamente, em tudo o que realizamos temos que pôr paixão. Alicerçando-nos em Jurgen Moltmann, a meta da missão de todos nós «não é simplesmente uma salvação individual, pessoal, nem tão-pouco espiritual; é a realização da esperança da socialização de toda a humanidade e da paz no mundo» (a grande compensação humana universal), evitando que o futuro leve homens ao desespero, que o nosso bem-estar signifique a pobreza dos outros, que o nosso crescimento destrua a natureza, tirando a angústia o lugar à esperança, para ser nossa companheira. Não podemos viver em angústias. Todos nascemos para sermos felizes, é nessa medida que todos nos temos que empenhar, não nos limitando apenas a existir. Sem remontarmos muito no tempo, Voltaire (1694-1778) disse que «o maior problema e único que nos deve preocupar é vivermos felizes». Oscar Wilde (1851-1900) sustentou que «viver é a coisa mais rara do mundo. A maior parte das pessoas limita-se a existir».
As pessoas portadoras de deficiência não devem sentir-se molestadas pela diferença que carregam, incluindo a pesada indiferença ou incompreensão dos outros (o que se torna insuportável por vezes), mas procurar, isso sim, manter consolidadamente vivas e íntegras todas as suas atitudes de dignidade de carácter, postura individual e social, de realização pessoal e profissional, sempre férteis e cientes das suas próprias capacidades, dificuldades e impossibilidades, vestindo uma película fascinante ou desprezível aos olhos dos outros. As agruras mais insuportáveis com que, por vezes, nos debatemos, são as resultantes da incompreensão, apatia ou negligência dos nossos amigos. A propósito, Helen Keller (1880-1968) deixou expresso que «o maior problema que os cegos enfrentam é a falta de visão dos seus amigos que vêem». Infelizmente, isso ainda acontece hoje. Ver, no sentido mais amplo que os conceitos de cultura e de teoria sugerem, não é a mesma coisa que ver só com os olhos porque, como dizia Carlos Queiroz (1907-1949), «ver só com os olhos é fácil e vão, por dentro das coisas é que as coisas são».
Insistindo em Voltaire, «a perfeição é atingida através de passos pequenos e calmos. Requer, sobretudo, a mão do tempo». Sejamos persistentes e tenhamos esperança. Punhamos paixão nos esforços e na concretização da resolução dos grandes problemas, porque, segundo Hegel (1770-1831) e nós mesmos, «nada de grande se cumpre no mundo sem paixão». Não podemos ser conformistas porque, como também dizia John Kennedy (1917-1963), «o conformismo é o carcereiro da liberdade e o inimigo do crescimento». Temos que ser capazes de crescer com alegria em verdade e liberdade. «Verdade e liberdade ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem» (João Paulo II, 1920-2005).
Disseram Leibniz (1646-1716) que «amar é pôr a nossa felicidade na felicidade do outro» e Chardin (1881-1955) que «amar significa colocar a própria felicidade na felicidade do outro». Todavia, e como contributo para um iniludível desenvolvimento humano global, muito principalmente nos domínios do comprometimento de todos no progresso para todos, da tolerância, da solidariedade e da esperança no admitir e conviver com as diferenças, temos que ser capazes de amar as nossas dificuldades específicas, as incompreensões dos outros, o empenho no esclarecimento e na inculcação da verdade, mas caminhando sempre perseverantes na estrada da vida, imbuídos do indisociável binómio verdade-liberdade, sem sujeição a caridades, nem a injustiças e egoísmos, cultivando e amando a nossa auto-imagem, auto-conceito, auto-estima, auto-confiança.
Escrevemos, algures, que temos vindo a construir um futuro na nossa consciência, o qual de quando em vez é condicionado por abruptos repentes, molestado por intempéries psico-sociais, posto em causa pela ignorância e futilidade intelectuais que nos rodeiam e fustigam a mente, nos inebriam o espírito, a moral e o civismo, desmoronando futuros do futuro. E um desses futuros é a cultura inclusiva, mas sem a indiferença, as rotulagens e categorizações que perpetuam a marginalização e a exclusão a todos os níveis. Não podemos ser indiferentes a esta inquestionável verdade, sob pena de sermos coniventes (parafraseando Dom Hélder Câmara, 1909-1999) na promoção da injustiça, que é a mãe de todas as violências, e do egoísmo, que é o pilar de todas as opressões. A nossa indiferença para com os outros é algo que sempre nos retribuirão com juros, às vezes incomportáveis, uma das razões por que temos que estar conscientes e vigilantes dos nossos direitos, para podermos defendê-los, e dos nossos deveres, para cumpri-los, como grandiosa homenagem ao nosso sublime habitáculo e à excelsa beleza biopsíquica e emocional, utópica e atópica, comunicacional e interactiva, que nele vive. Amar a diferença e interagir com ela, é sermos solidários e felizes contagiantes. É na diferença que a reciprocidade da solidariedade e do amar é mais intensa.
Não há dúvida de que, numa dimensão sartreana, é lançando-se no mundo, sofrendo nele, que o homem se define aos poucos. Tem sido neste processo existencial e intelectual que todo o nosso progresso empírico e científico se tem vindo a desenvolver e a consolidar, de algum modo simultaneamente a promover situações, circunstâncias, que constituem elementos, ainda que ínfimos, de transformação de mentalidades, sobretudo no que se refere à eliminação de fantasmas impeditivos da necessária ampliação comunicacional humana, como processo interlocutivo e interactivo mais promotor e facilitador da saudável inclusão na diversidade do conhecimento e na convivialidade nos mais diferentes domínios. É por isso que estamos convictos de que é com inteligência e emoção, tolerância e solidariedade, vontade e comprometimento, que seremos capazes de transformar, proficientemente, mentalidades e o mundo de todos nós, o mundo que todos nós constituímos e que somos. Confúcio poderá perder a razão, no afirmar que: «Se agires sempre com dignidade não melhorarás o mundo; mas uma coisa é certa: na terra haverá menos um canalha». Se os canalhas forem sendo sucessivamente destronados no tempo e no espaço, havemos de, concerteza, atingir um dia esse desejável estádio de intercompreensão humana, onde os portadores das mais diversas dificuldades específicas também possam caber.
A inteligência não pode prescindir da emoção, da tolerância nem da solidariedade, porque, sem elas, ficaria sobremaneira mutilada, uma das razões por que alguma da barbárie mais intolerável do século XX, por exemplo, andou de mãos dadas com uma arrogante ciência e uma demoníaca crença numa determinada supremacia civilizacional. Ao mesmo tempo, a inteligência requer vontade e comprometimento em não aceitar instrumentalizar-se, submetendo-se a inconveniências e ignomínias. É que a transformação das mentalidades faz-se através da formação desde o berço. Não há transformação sem educação e formação interiores, espiritual, moral e cívica. Nada somos sem o exercício apurado e constante da consciência crítica, pessoal e social, interpelando o adquirido e o hegemónico, imaginando e promovendo resoluções para os problemas sociais, que nos afectam, e alternativas para melhorar ou eliminar o anómalo. Cada um de nós instaura na vida social a possibilidade de outros lugares no lugar que é o nosso e que nos parece exclusivo. Contribuímos com esta atopia para contrariar a utopia, como forma de promover equilíbrios na vida humana (Moisés de Lemos Martins, 2002).
De facto, e porque é a questão do corpo que nos motiva para a elaboração deste arrazoado, «de todos os corpos, o corpo humano é simultaneamente aquele que mais depende do lugar, e aquele que mais transforma o lugar. Aquele cujo lugar se inscreve na sua profundidade (seja ela o que for)» (Silva, 1999: p. 25). E conclui (secundando Berthelot, 1995), afirmando que, nessas circunstâncias, o corpo é um «operador discursivo: tem um papel de «validação», mas, e porventura mais importante, um papel de «mediação e integração» [ ], porque, além de estar nos discursos, problematiza e cria discursos (ele constrói-se nos discursos e constrói discursos; é simultaneamente um objecto, um método e um resultado do conhecimento). E, disciplinados pela cultura, é-nos tantas vezes indispensável um horizonte de utopia para podermos praticar um realismo arrojado e criador, amando as ideias e a comunicação das ideias, a curiosidade intelectual e a aprendizagem permanente, imbuída nos grandes valores, a propugnante persistência «em busca do mais ser» (Feitosa, 1993, e Sérgio, 1999), sem os fantasmas da dúvida, quer por ignorância intelectual, quer por qualquer motivo de conveniência.
Efectivamente, «este mundo é uma comédia para aqueles que pensam e uma tragédia para os que sentem» (Horace Walpoole, 1717-1797), mas «é no presente onde se situam as nossas obrigações e no passado onde repousam as nossas preocupações que reside o futuro onde se dirigem as nossas esperanças» (Frederico Ozanam, 1813-1853). A vida humana é um projecto global que deverá conferir a verdadeira significação e legitimação do sentido do mundo que todos constituímos e somos.
Se for preciso, gritemos aos olhos que oiçam, quando não sabem ou não querem ver, E fustiguemos de intensa luz os ouvidos para que vejam, quando não sabem ou não querem ouvir. É imperioso desmoronar as conchas da palavra, da inteligência e das consciências, sem vociferar, mas sempre a sorrir persistência, tolerância, solidariedade e partilha, comprometimento, esperança, espelhando a necessária estrutura intrínseca de cada um, invicta na materialização de caminhos para um desenvolvimento global inclusivo, em que todos, mas todos, se comprometam, sem reservas e sem excepções, desafiando as novas desigualdades sociais e as novas oportunidades de inserção e inclusão, mediante uma intervenção solidária como factor de inserção e desenvolvimento, assente numa cooperação especializada no estudo e progresso científico em habilitação, reabilitação e inclusão a todos os níveis, nomeadamente comunicacional, cultural, social.
Almejando-se o século XXI como o século da comunicação, todos os países do mundo onde a persistente, cruel e silenciosa discriminação de largos milhões de cidadãos acontece - teriam nesta matéria um papel pioneiro e crucial no alargamento do paradigma comunicacional, criando e implementando estratégias para uma comunicação total, não menosprezando nenhum handicap comunicacional. Só Portugal, na sua população residente calculada em 10356117, pelo último censo de 2001, inclui 634408 pessoas portadoras de deficiência, sendo, para além de outras tipologias, 163515 com deficiência visual, 156364 com deficiência motora, 84156 com deficiência auditiva, 71056 com deficiência mental e 14977 com paralisia cerebral. Urge, pois, em função deste quadro de desafios, de forma a que, na efectiva prática das relações sociais no centro da vida da cultura para todos, o acesso à informação, bases digitais e redes multimédia, passe a processar-se regularmente mercê do incremento e resultados da aplicação e exercício da comunicação aumentativa e alternativa e de toda a especificidade tecnológica de compensação.
Verificando-se o estudo e aplicação das adequadas estratégias num tal horizonte comunicacional - legitimador de discursos, comportamentos e acções, caleidoscópio da biodiversidade social, cultural e interculturalidade, das pluralidades técnico-científicas e mesmo das posturas anti-racionalistas - concerteza que viríamos a (com)viver mais, em banda incomensuravelmente mais larga, mais frutuosa e mais feliz para todos os cidadãos, independentemente dos handicaps comunicacionais, numa natural e inclusiva aculturação, incentivando-nos a todos à cultura da partilha.
Concluindo esta breve mas sentida comunicação (e sem pretendermos ser demasiado redundantes no reforço das nossas convicções), estamos cientes de que o nosso corpo, o nosso habitáculo temporário e visibilidade do nosso desenvolvimento neuropsicomotor, tem direitos e deveres a fruir como garantes da sua íntegra e digna sustentabilidade, veiculando, interagindo e materializando (através dos processos endógeno e exógeno) as nossas preferências, opções, desejos, amores e ódios, actos e omissões, determinações e estratégias na interacção e intercompreensão humanas. A nossa imagem (rosto e silhueta como cartão de visita) tem direito, não obstante apresentar disfunções que nos condicionem ou impossibilitem de interagir normalmente, a existir e a viver como reflexo ontogénico feliz de todas as nossas manifestações. As hipotéticas mazelas do nosso corpo não têm que nos molestar a mente, o espírito, a inteligência, a consciência... marginalizando-nos ou excluindo-nos aos mais diversos níveis, designadamente nos planos sociocomunicacional, cultural, profissional e intelectossocial, pois o corpo é apenas o nosso efémero lugar orgânico observável e tangível, perceptivo-motor, interactivo-comunicacional, para que a comunicabilidade e interactividade entre nós se processe naturalmente face a face ou à distância. O grau de determinados valores informativos que põem em causa a normal inclusão das pessoas diferentes tem que diminuir e desaparecer na absorção social imposta gradualmente pela cultura dos cidadãos em geral e das políticas de sensibilização em especial. São as consciências que recusam direitos e deveres ao corpo pelas disfuncionalidades posturológicas, sensoriais, motoras e outras que apresenta, e as decorrentes posturas que emergem de padrões estabelecidos dentro do conceito de «normalidade» (com o significado dos gestos e atitudes humanas no decurso da ciência cinésica, reconhecendo-se a importância do comportamento corporal na comunicação e a sua estreita relação com certos níveis de discurso) socialmente instauradas na mente de cada um, sobretudo devido a uma generalizada, por vezes até cultivada por estranhas conveniências, ignorância intelectual. Sentir, referir e justificar qualquer envolvência ou itinerário conducente a um sistemático desenvolvimento global inclusivo, porventura do nosso corpo rotulado por disfunções visíveis e condicionantes, implica o cultivo da persistência, da tolerância, da solidariedade e da esperança, da cultura da partilha, conceitos assimilados e interiorizados (ou a assimilar e a interiorizar) na sensibilidade, no comprometimento deontológico, na vontade individual e grupal, social e ético-política.
E porque a poesia não deslustra a ciência, mas pode ajudar a problematizá-la, a conferir-lhe mais consistência e a colocá-la noutras asas do pensamento, escrevemos, no dia 21 de Março («Dia Mundial da Poesia») de 2003, em Lisboa, o seguinte:
A POESIA E AS DIFERENÇAS QUE NOS UNEM
Há nos olhares das palavras e dos gestos,
Dos corações a amplas vozes de mil cores,
Como o poema mais brioso e mais diário,
Um mundo são, mais generoso e solidário,
Um mundo novo, vivo, livre e são de afectos.
Há poesia nas palavras mais singelas
Como um poema no mais ínfimo dos gestos.
Há poesia no prazer e no amar
Como um poema em cada forma de sorrir,
Como um poema em cada modo de pensar.
Há poesia nos olhares do repente
Como um poema que nos clama coisas belas.
Há poesia no dizer e no sentir
Como um poema de doçura contundente
Num abraçar a tolerância tão urgente.
Há poesias e poemas a gritar
As liberdades e verdades que se fundem,
Civilizações e culturas que nos unem.
Há poesia no saber e no errar
Como a esperança num poema a namorar...
Como um poema em cada ser de cor difrente.
Há poesia em todo o corpo que nós somos,
Há poesia nas difrenças que nos unem.
Há poesia que nos faz rir e chorar
Como um poema em cada sonho que nós somos,
Como um poema em cada sonho que propomos.
Há poesia nos canhões da paz dos sonhos
Como a verdade e liberdade a exigir,
Como um poema em cada sonho a resistir!
BIBLIOGRAFIA
FEITOSA, Anna Maria Contribuições de Thomas Kuhn para uma Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
FONSECA, Vítor da Aprender a Aprender a Educação Cognitiva. Lisboa: Editorial Notícias, 1999.
FONSECA, Vítor da Perturbações do Desenvolvimento e da Aprendizagem: Tendências Filogenéticas e Ontogenéticas. Lisboa: Faculdade de Motricidade Humana, 1999.
GUERREIRO, Augusto Deodato Cultura dos sentidos e ampliação do paradigma comunicacional: uma vertente especial na interlocução e interacção humana. «Caleidoscópio: Revista de Comunicação e Cultura». Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, nº 1 2º semestre 2001; p. 97-107.
GUERREIRO, Augusto Deodato Para um horizonte comunicacional de banda larga. «Medialogias: Jornal do Departamento de Ciências da Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação»: Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 4 Primavera 2005; p. 3.
GUERREIRO, Augusto Deodato Para uma Nova Comunicação dos Sentidos. Lisboa: Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, 2000.
MARTINS, Moisés de Lemos A Linguagem, a Verdade e o Poder: Ensaio de Semiótica Social. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002.
MIRANDA, José A. Bragança de Teoria da Cultura. Lisboa: Edições Século XXI, 2002.
QUEIROZ, Carlos Desaparecido. Breve Tratado de Não-Versificação. Lisboa: Ática, 1984. (1º Volume da Obra Poética da Colecção Poesia das Edições Ática, prefaciado por David Mourão-Ferreira)
RAIMUNDO, Orlando A Entrevista no Jornalismo Contemporâneo. Coimbra: Minerva, 2005.
ROSÁRIO, Alberto Trovão do O Desporto em Portugal: Reflexo e Projecto de uma Cultura. Lisboa: Instituto Piaget, D.l. 1996.
SILVA, Paulo Cunha e O Lugar do Corpo: Elementos para uma Cartografia Fractal. Lisboa: Instituto Piaget, Cop. 1999.
SÉRGIO, Manuel Um Corte Epistemológico: da Educação Física à Motricidade Humana. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
SOUSA, Daniel Augusto de Formalismo Sociológico e Análise Estrutural-Funcional. Lourenço Marques, 1974.
WEIL, Pierre, TOMPAKOW, Roland O Corpo Fala: a Linguagem Silenciosa da Comunicação Não-Verbal. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
*Comunicação publicada no Livro de Actas do IV Congresso Internacional de Motricidade Humana: Motricidad y Desarrollo Humano (Porto do Son, 30 de Junho a 3 de Julho de 2005). A Coruña: Editorial Diputación Provincial de A Coruña, 2005; p. 295-300.
*Publicada posteriormente na revista Vértice. Lisboa: Editorial Caminho, nº 126 Janeiro-Fevereiro 2006; p. 60-70.
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