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Sozinha nas termas

por Lerparaver

Por A. M. Fontes

Não havia dúvida. Eu precisava de descansar. Se possível tratando da saúde ao mesmo tempo. Como tenho problemas digestivos quase tão velhos como eu, a solução só podia ser uma cura em Monte Real.

Decidido e feito. Telefonei para as termas. Informei que sou cega total, na terceira idade, e que iria sozinha. A recepcionista aconselhou-me a ir quanto antes, para me poupar à previsível confusão do mês de Agosto. Dentro das cabines dos tratamentos garantia-me a ajuda de alguém, afirmava ela; mas para além disso…… Pensão onde ficar não podia sugerir; porém deu-me o número do posto de turismo.

Poucos minutos mais tarde eu estava já munida de números de telefone de algumas pensões. Não tendo referências actualizadas sobre nenhuma delas, podia ter começado por uma qualquer, ao acaso. Não. Comecei pela pensão Santa Rita. "Assim como assim," pensei, "sempre será melhor ficar entre santos"… As condições agradaram-me, de modo que acabou ali a minha ronda.

Faltava resolver o problema essencial do acompanhamento para as termas. Acto contínuo, voltei a ligar para lá. Atendeu-me a mesma recepcionista. Perguntei-lhe se me poderia arranjar uma acompanhante da terra - uma jovem ou senhora que quisesse ganhar uns trocados. Prometeu tentar.
24 horas depois dava-me resposta afirmativa: Uma estudante de enfermagem, de 21 anos, muito responsável ao que constava, cujo contacto me forneceu. Empolgada com aquele golpe de sorte, marquei consulta para o dia seguinte.

E pela manhã lá foi a família levar-me a Monte Real, em busca de Santa Rita.
Durante a visita guiada a que tivemos direito, fiquei desvanecida com a gentileza inesperada de terem reservado para mim um quarto de casal no rés-do-chão, perto da sala de jantar (“para eu ter mais espaço e maior comodidade”); mas nem esse desvanecimento venceu a hostilidade do contacto físico com as instalações. “Olha que isto é um tanto ou quanto labiríntico…”, segredou-me o meu companheiro, referindo-se ao trajecto entre o quarto e a recepção. “Pelo menos resta-me o consolo de ter a vida facilitada na ida para as refeições”, pensei em voz alta. Enganava-me. O pequeno almoço tomava-se numa outra sala que, como o bar, se situava um piso abaixo. Isso implicava aprender o caminho do quarto para a recepção, daí para as escadas das traseiras, descê-las, e por fim seguir quase em frente, como quem atravessa uma rua estreita.
Apertou-se-me o coração. Seria eu capaz de fazer aquele trajecto sozinha?... Sim, que um hóspede não pode estar sempre a depender dos funcionários, nem de outros hóspedes. Estava longe de adivinhar que aquela aparente dificuldade viria a transformar-se numa verdadeira bênção! “E pela entrada principal?”, perguntei sem alento. Não. Era ainda mais difícil. A nossa cicerone apercebeu-se do meu desconforto. Solidária, pôs-me à-vontade para ir conhecer outro alojamento.

Não quis: qualquer pensão me causaria o mesmo impacto hostil de estranheza quando lá entrasse pela primeira vez. Deus sabe a sensação de desamparo que me ia na alma quando a família me deixou à espera da jovem desconhecida que haveria de me levar à consulta e me acompanhar depois regularmente.…
Ela chegou de pronto, tímida, receosa. Nunca tinha lidado de perto com uma pessoa cega. Expliquei-lhe como queria ser conduzida. Se eu calculava mal a altura de um degrau, ou se tropeçava, era um susto! E se eu me magoasse, por descuido dela? Nem pensar! Receita: usar sempre a bengala.

Em flagrante contraste com este acanhamento, o médico dirigiu-se-me como se já nos conhecêssemos. E eu correspondi, cordial também, porque a

familiaridade nunca degenerou em infantilização. Éramos da mesma idade, disse, ao ver a data de nascimento na minha ficha de inscrição. Também ele tinha estudado em Coimbra. Essas coincidências aproximaram-nos espontaneamente.
Prescreveu dois tratamentos diferentes, os dias em que eu devia fazê-los, deixando-me depois num gabinete para os pagar e levar as respectivas fichas. Ali, encontrei-me de súbito com nove cartõezinhos na mão, as tais fichas. Ao meu tacto pareciam todas iguais. Não eram: cada uma indicava um tratamento e um dia determinado, e pediam-me que as entregasse de acordo com o nome do tratamento e a data nelas inscritos. Localizar a ficha certa afigurou-se-me então uma missão impossível. Estava prestes a render-me à inevitabilidade da ajuda quando a funcionária começou a pôr ordem naquele caos: envolveu cinco fichas num elástico, - eram as ondas curtas - e as quatro restantes num outro, as enteroclises.
A missão ia-se tornando possível, afinal. Para entregar as fichas por ordem ocorreu-me de imediato pôr o talão Multibanco por cima da primeira das cinco. Mais tarde descobri que nem era preciso talão. Foi quando um rasgo de intuição me levou a questionar sobre se as fichas seriam de facto exactamente iguais. Suscitada a dúvida, apalpei-as com minúcia. E as minhas mãos, habituadas a ler braille, detectaram saliências minúsculas de um dos lados. Eram letras, esclareceram os olhos da minha acompanhante.

Por essa altura já o horário e o preço do seu serviço tinham sido acordados. O nosso dia começava pontualmente às oito e um quarto. Ela esperava-me a princípio à porta do quarto, depois na recepção, por último já ao fundo das escadas. Ou fosse por causa dos chuviscos matinais, ou a pretexto da comodidade, brindou-me várias vezes com transporte no seu carro.

Entre as tomas de água, de 20 em 20 minutos, os tratamentos e a caminhada de regresso à pensão fugiam duas horas. Havia pouca gente nas termas. Para arrelia e perplexidade da minha jovem guia, todas as manhãs lá estavam duas mirones a olhar para nós sem cerimónia. Mais inconformada ficou quando um estranho nos abordou à queima-roupa para criticar a forma como

eu me estava a deixar conduzir. Por ter um genro cego, muito desenvolto como se apressou a dizer, julgou-se credenciado para ensinar que eu devia segurar o braço da minha acompanhante junto ao cotovelo. Retorqui que também sei essa regra, só que nós as duas ajeitávamo-nos melhor assim, de mão dada. E de mão dada continuámos, rebeldes, o nosso caminho. Pelas 10 e um quarto regressávamos à pensão para o merecido pequeno-almoço.

O turno da tarde, das 5 às 6, era mais suave, pois o único item obrigatório consistia numa toma de água. Prestava-se a diálogos, em simultâneo com caminhadas mais longas, tanto quanto possível em locais aromáticos.
Veio à conversa o sistema braille. Ela manifestou vontade de conhecer o alfabeto. Escrevi-o com a velha régua que costumo trazer na carteira. No domingo de manhã, como não havia tratamentos, e como de barriga vazia escasseiam as forças para actividades físicas, aproveitámos o tempo de espera entre as tomas de água para a nossa aula. Sentadas num banco ao ar livre, ela escreveu a tinta, ao lado dos caracteres braille, os respectivos equivalentes. A seguir ditei-lhe a frase curta que também constava na folha. Depois, com ajuda da cábula e sob a minha orientação, decifrou a última frase da folha. E levou TPC. Na terça-feira recitava-me, triunfal, a quadra que eu tinha escrito para ela.

Exceptuando as três horas diárias em que eu tinha companhia assegurada, o resto do tempo era passado na pensão. Uma maçada? Um fardo de solidão? De modo algum. Na bagagem Apenas tinha levado a minha aparelhagem com rádio, gravador e leitor de CD, o meu tricô e uma revista para ler. Além do telemóvel na carteira. Um telefone e um televisor faziam parte do equipamento do quarto. Impressionante como de tão pouco se pode tirar tanto! Quantas coisas diferentes cabiam naquelas quatro paredes! Música ligeira e clássica, dança (ainda que sem par), trabalho manual, leitura, notícias do mundo inteiro e comunicações com pessoas distantes. Era só eu querer, o meu despretensioso quarto sem varanda elevava-se à transcendência de uma igreja, pois até para comungar em oração e ouvir mensagens de esperança a rádio me oferecia oportunidade!

Quando o apelo de presenças humanas reais era mais forte, eu saía para as áreas colectivas da pensão, cada vez menos hesitante.
Desde o momento da chegada compenetrei-me de que a impressão que deixasse poderia favorecer (ou prejudicar) a aceitação futura de hóspedes cegos. Por isso comecei logo a tentar aprender os trajectos para os locais onde precisava de ir com mais frequência. Enquanto a recepcionista me ajudava num desses aprendizados iniciais, duas hóspedes associaram-se, por curiosidade, ao desenrolar da cena. Expliquei-lhes que me são indispensáveis pontos de referência para me locomover sem ajuda, dei exemplos de coisas diversas que servem de pontos de referência, mostrei-lhes como indicar o pormenor fundamental da direcção certa. Era tal o entusiasmo que me contagiaram, ao ponto de lhes demonstrar as noções de “alinhar” e “enquadrar”.
As improvisadas professoras de mobilidade saíram-se magistralmente! Conquistámos o fundo das escadas traseiras, logo depois o bar. Então desvendaram-me uma descoberta que faria toda a diferença. Estava ali, como por magia, um percurso plano, rectilíneo e estreito, ladeado de heras e hortênsias, onde eu podia saciar a minha sede de movimento e de natureza sem depender de ninguém e sem o mínimo risco de me desorientar. Era o espaço que mediava entre o parque de estacionamento privativo da pensão e a saída para a estrada, no extremo oposto - cerca de 200 passos em cada sentido. Sempre que me apetecia, pegava na bengala e lá ia eu, de cá para lá, de lá para cá, às vezes em marcha acelerada, repetindo o circuito até me cansar, qual animal preso a uma corrente, mas ainda assim fruindo a plenitude de uma sensação de liberdade. Nos pontos aromáticos comprazia-me em parar para inalar fundo e gozar a paz perfumada que deles se desprendia.
Numa exploração sorrateira do rés-do-chão deparei-me com uma escadaria a descer a pique, escondida a um canto. Nada que o uso correcto da bengala não resolva, aliado à prudência requerida quando se pisa terreno desconhecido.

Um dia as minhas ambições excederam-se. Então o perigo espreitou. Foi quando quis apanhar sol, imaginando-me na praia. No regresso da água da

tarde pedi à minha guia que me deixasse junto da piscina da pensão, à saída para a estrada. Ela escolheu uma cadeira onde os mergulhadores não me salpicassem, ajeitou o chapéu por forma a dar-me sombra na cabeça e despediu-se por fim, não sem recomendar cuidado ao ir embora para não cair à água. Fiquei em biquíni, de pé, virando-me de frente, de perfil, de costas e outra vez de perfil, como se quisesse ser fotografada em várias posições. Até que o calor do sol deixou de me afagar a pele. Da piscina chegavam-me vozes indistintas que não me inspiraram confiança. Hesitei. Quando dei por mim já só ouvia silêncio à minha volta. A hora do jantar aproximava-se. Se eu não aparecesse na sala a tempo, alguém iria certamente procurar-me, e ninguém da pensão sabia onde eu estava. Não me podia permitir desconsiderar assim as pessoas que à mesa me prestavam um serviço VIP, pelo qual me deixei preguiçosamente mimar. Com as voltas dadas no recinto da piscina até escolher a cadeira, eu tinha perdido por completo a direcção da saída. Que fazer?... Não arrisquei. Puxei pela cabeça. Peguei no telemóvel e liguei para a recepção pedindo ajuda. Apareceu o patriarca da casa, um tanto apanhado de surpresa pela invulgaridade do expediente. Solícito, reconduziu-me a porto seguro, a mão trémula no meu braço denunciando-lhe a idade.

A semana pareceu-me mais curta. As compras na loja das lembranças anunciavam-lhe o fim. Passa sempre depressa o tempo em que nos sentimos felizes, não é? Revivi-o ao escrever este texto, simplesmente por gosto, qual eco que reverbera um som.

A fechar em beleza esse período de sorte, surgiu-me inesperadamente uma boleia para casa.
Quando o automóvel deixava para trás a paisagem de Monte Real, já com saudade eu murmurava: “Adeus, Santa Rita! Até para o ano, quem sabe?...” Será que a santa ouviu?...