A sociedade em que vivemos é uma civilização da imagem. Não apenas através dos meios de comunicação como a televisão, o cinema, a banda desenhada, revistas em geral, a imagem é um mecanismo de comunicação hegemônico. A proeminência da imagem é derivada da supervaloração da visão, que é o sentido humano mais utilizado e que se torna
o modelo exemplar que comanda a racionalidade ocidental.
A chamada teoria do conhecimento é fundada no modelo da visão. É por isso que existe o predomínio de expressões como ponto de vista, observação, etc. A audição e os demais sentidos pouco participam das metáforas das concepções sobre o saber humano ou o saber científico, mais especificamente.
Assim, é comum se ler textos sobre o lado oculto ou a face oculta de determinado
fenômeno ou sobre seu caráter invisível, mas dificilmente se encontra algum texto
que aborde o caráter inaudível ou intangível de algum fenômeno.
Isto coloca em questão a situação dos cegos na sociedade da imagem. O problema da relação entre cinema e cegueira é bastante complexo e nos limitaremos aqui a analisar o filme A Cor do Paraíso, que tem um menino cego como personagem principal.
A partir deste filme podemos colocar em discussão a civilização da imagem e o problema da cegueira no seu interior.
A Cor do Paraíso de (Majid Majidi, Irão, 1999), passa uma mensagem. Não iremos analisar a mensagem intencional deste filme, ou seja, aqui não iremos buscar descobrir o seu
significado original, pois para fazer isto teríamos que realizar uma pesquisa complexa,
que envolveria o processo de produção do filme, as concepções do diretor, etc.
O nosso objetivo aqui é atribuir uma significação ao filme e assim chegar a uma mensagem não-intencional repassada por ele. Sem dúvida, essa mensagem inintencional pode coincidir
com o significado original do filme, mas esta possibilidade não pode aqui ser trabalhada,
devido ao motivo aludido anteriormente.
Notamos no filme uma narrativa que focaliza o menino cego e seu pai.
O enredo expressa o conflito pai-filho, cuja origem está no preconceito do pai em relação ao filho cego. Esta oposição permeia toda a narrativa e vai se desdobrando de tal forma que
o tema da cegueira acaba revelando uma dupla cegueira: a cegueira no sentido literal
da palavra e a cegueira num sentido figurativo.
A cegueira no sentido literal é a do menino cego e se expressa como falta de visão,
isto é, impossibilidade de utilizar um dos sentidos humanos. A cegueira no sentido
figurativo é a do pai do menino e caracteriza-se pela falta de percepção da realidade,
a incapacidade de ver, ou melhor, de ter consciência das relações sociais que cercam
este indivíduo.
A falta de visão do menino cego é compensada pela percepção do mundo pela sensibilidade, tacto, audição e referenciais intelectuais (tal como o braile, que ele utiliza nos seus contatos tácteis com flores, folhas, etc.). Ele consegue se mover bem no interior
das relações sociais e lugares em que vive. O seu desenvolvimento intelectual, exemplificado quando surpreende todos na escola das irmãs, por ler em braile mais rápido
e acertadamente do que o outro menino que fazia a leitura, bem como sua percepção
da relação problemática com o pai, tal como se percebe no fato dele não presenteá-lo,
mas tão-somente a sua avó e irmãs.
Em contraste, temos a outra cegueira, que é a do pai. Este demonstra uma falta de
percepção da realidade social que é a raiz do conflito com o filho cego. Esta falta
de percepção não é produto da incapacidade natural ou da maldade inata, como poderia
apressadamente ser sugerido por quem ao invés de aprofundar a análise prefere ficar
na superficialidade ou nos modelos abstrato-metafísicos. A base de sua falta de percepção
encontra-se no preconceito contra o menino por ser cego (e isto é demonstrado durante
todo o filme, desde o regresso ao seu vilarejo evitando os lugares em
que teria que entrar em contacto com outras pessoas). Além do preconceito, os valores
do pai, tal como individualismo e sua ânsia por dinheiro são outros elementos que
dificultam o desenvolvimento da sua consciência do real. Ao culpabilizar a mãe pela sua situação, lamenta-se pelo filho cego e a perda da esposa, exteriorizando assim o seu egoísmo e a implícita sobrevaloração do dinheiro.
Esta incapacidade de percepção da realidade social provoca várias conseqüências,
tal como a auto-destruição, que pode ser exemplificada na perda da mãe e do filho
e na não realização do casamento, bem como na destruição do outro, a morte do filho.
Assim, temos, por um lado, a cegueira da visão com as inerentes dificuldades mas parcialmente superadas. O problema maior é que tais dificuldades são ampliadas por determinadas relações sociais. As relações sociais capitalistas, geradoras de preconceito, individualismo, competição, conflito, etc., e que consubstanciam diferenças físicas em motivação discriminatória.
Por outro lado, temos a cegueira da percepção que traz o preconceito,
destrutividade e auto-destruição. Esta é a maldição da cegueira, o resultado de uma
consciência limitada, que tem conseqüências nefastas, quer exista ou não consciência
disto.
Neste processo o que ocorre é que a consciência coisificada do pai gera a destruição
do filho e de outras pessoas, acarretando para ele, além do sofrimento da perda, o sentimento de culpa.
Este é um fenômeno que ocorre sob múltiplas formas na sociedade moderna e que o filme evidencia, não pela mera observação do filme mas pela reflexão, pela constatação de que a
cor do paraíso não pode ser vista senão pelos límpidos olhos da alma que busca a subterrânea causa das coisas humanas.
Artigo recreado do texto de Nildo Viana originalmente publicado no Jornal Opção.
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Percepção
Gostei muito de sua reflexão sobre as variantes de falta de percepção. De certa forma remeteu meus pensamentos ao Mito da Caverna, de Platão; e as dificuldades que enfrentou o cativo que subiu à superfície que representa, no texto, a elevação da alma.
Abraço fraterno.
Abrahão
Autoria
Quando se publica artigo de outro autor, é necessário colocar o devido crédito, abaixo do título o nome do autor e no final o link para publicação original, no caso, http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/
Grato!
Renato
Tem razão
Olá!
Tem toda a razão...rsrsrsrsrsrsrs...!
A maior parte dos posts que coloco aqui, encontro-os na Net e por vezes eu esqueço-me de citar o nome do autor... Mas é o mais correcto!!!