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Deficientes visuais comentam "Ensaio Sobre a Cegueira" com audiodescrição

por Lerparaver

Pessoas pisam em fezes no chão. Uma mulher de corpo volumoso está nua, de costas, numa cama. A esposa do médico enfia a faca no barman.

Alexandre Ermel/Divulgação

"Ensaio Sobre a Cegueira" para deficientes visuais com faz narração simultânea das cenas com diálogo, trilha sonora e sons O que é mais incômodo? Assistir imagens fortes como estas, escutar sua descrição ou, simplesmente, lê-las como se encontram acima?

O DVD de "Ensaio sobre a Cegueira", adaptação da obra homônima do Nobel português José Saramago, realizada pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, chega ao mercado com um recurso que permite que tanto cegos como pessoas com perfeita capacidade de visão discutam a questão.

Essa técnica é a audiodescrição, que permite a melhor compreensão de um filme por parte de quem não pode ver por meio de uma narração simultânea das cenas, mesclada a diálogos, trilha sonora e sons que fazem parte da ação.

A Folha exibiu o DVD a um grupo de deficientes visuais que trabalham na Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, ou a frequentam. Ao compositor Sérgio Sá, que é cego de nascença. E ao professor de direito internacional da USP, Alberto do Amaral Junior, que perdeu a visão aos 20 anos.

A experiência teve interesse duplo para todos. Primeiro, porque o lançamento é praticamente pioneiro no Brasil e oferece a pessoas que não enxergam a oportunidade de assistir a filmes sem precisar da ajuda de terceiros. Segundo, pelo fato de o tema central da obra ser a cegueira, ainda que com um significado alegórico.

Na história, uma misteriosa epidemia faz com que, gradativamente, a população de uma cidade perca a capacidade de enxergar. A única personagem não contaminada é a mulher de um médico --interpretada pela atriz Julianne Moore. É ela quem guia o grupo central do enredo até seu epílogo.

Protestos

Marlene Bergamo/Folha Imagem

Os deficientes visuais Nadir Henrique de Camargo, 48, e Dalmir Bernardo, 65, assistem a versão de "Ensaio Sobre a Cegueira" Na época do lançamento do filme nos EUA, uma associação de cegos sediada em Baltimore promoveu protestos ao considerar que este apresentava os deficientes como monstros.

Isso porque, na trama, o governo confina os infectados num asilo, em condições precárias de higiene e alimentação. Logo, a disputa pela comida provoca desentendimentos, seguidos de uma violência crescente, que leva a estupros coletivos e, finalmente, à guerra.

Na ocasião, Saramago reagiu contra a manifestação do grupo norte-americano, declarando que "a estupidez humana não diferencia cegos e videntes".

O compositor Sérgio Sá, 56, autor do livro "Feche os Olhos para Ver Melhor", concorda com o português. "Eles não perceberam que o filme não é sobre cegos, que estão ali como uma metáfora para falar da nossa omissão. É essa omissão que cria monstros", diz.

Meirelles ainda não viu a versão de seu filme com audiodescrição e está curioso com relação à recepção por parte dos deficientes. "Mas os caras que protestaram nos EUA erraram o alvo. Eu mesmo não fui estudar o comportamento de cegos para dirigir os atores. Para mim, essa história não é sobre cegos, é sobre o homem."

O professor Alberto do Amaral Junior, 49, acrescenta: "O autor poderia ter usado uma outra deficiência física, mas a cegueira é a mais emblemática e a que mais assusta no mundo em que vivemos", explica.

Para o acadêmico, o "Ensaio" é uma obra aberta a diversas interpretações. Mas aponta duas que considera as mais importantes. "A surpresa diante da cegueira repentina mostra a incapacidade humana de lidar com o perigo novo e desconhecido. Essa surpresa leva as autoridades a pensarem imediatamente na reclusão dessa ameaça. Isso faz lembrar os textos de Michel Foucault [1926-84, filósofo francês que, entre outras coisas, estudou a relação do homem com a loucura e a prisão]".

A outra leitura, para ele, refere-se à disputa de poder. "Ela nasce de um princípio básico: a privação da alimentação. Isso não é próprio da cegueira, mas do ser humano de modo geral."

Mundo real

Apesar de o foco central da obra não ser a enfermidade, alguns deficientes identificaram-se com personagens e passagens. É o caso de Gilson Rocha da Silva, 28, que nasceu com um problema de visão, mas ficou completamente cego há um par de anos. "A discriminação que os cegos sofrem no mundo real está bem mostrada.

As autoridades preferem nos trancafiar, nos deixar num canto, do que enfrentar o problema de nos integrar à sociedade."

O massoterapeuta Dalmir Bernardo, 65, cego há mais de 20 anos por conta de um glaucoma, acha que o filme pode ajudar a conscientizar aqueles que veem. "As pessoas nunca pensam que algo ruim pode acontecer com elas. Aquelas primeiras cenas, meio confusas, em que o oriental fica cego, exemplificam essa questão da nossa impotência", diz.

Professor voluntário de informática na fundação, Antonio Carlos Grandi, 54, que perdeu a visão recentemente, crê que o filme não supera o livro, mas gostou da audiodescrição.

"A narração não pode ser interpretativa, não tem que nos explicar nada, apenas contar de forma direta o que é a imagem que está na tela. Nesse sentido está muito bem feita."

"Tudo branco"

Já para a aposentada Olinda Haragutchi, 76, que tem a mesma cegueira dos personagens do romance --"eu vejo tudo branco, até quando está escuro"-- a versão para deficientes não funcionou. "Tem muito barulho, muita voz. Me compliquei e não consegui acompanhar a história. Prefiro livro falado."

Já sua amiga, Maria das Graças Gomes de Souza, 40, que tem visão parcial ("vejo vultos"), gostou muito da sessão. E diz que, se o recurso se tornar mais comum, seu marido e seu filho vão comemorar. "Eu vivo atrapalhando, fazendo com que eles me contem o que está acontecendo na televisão. Agora, se isso ficar usual, vou poder até ir ao cinema sozinha."

Amaral lembra, porém, que não é só a solidariedade que faz nascerem iniciativas como essa. "É claro que é uma coisa muito legal, mas evidentemente tem uma jogada de mercado aí. Com mais audiodescrições, haverá mais consumidores."

Essência do recurso é não interpretar

A audiodescrição é uma técnica nova no Brasil. O grupo responsável pelo roteiro de "Ensaio" é o Midiace (Associação Mídia Acessível), formado por acadêmicos da Universidade Federal de Minas Gerais, da Federal da Bahia e da Estadual do Ceará.

Eliana Franco, que trabalha com o tema desde 2004, é uma das responsáveis pelo texto final, ao lado de suas alunas Iris Fortunato e Avany Lima. "A regra número um é jamais interpretar, antecipar ou resumir. É preciso manter o suspense natural."

Na sessão que a Folha assistiu com os deficientes, as reações não foram diferentes das de qualquer público. As cenas de violência e sexo foram perfeitamente compreendidas.

Já algumas passagens que dizem respeito ao dia-a-dia dos cegos fizeram com que rissem muito, como as de trombadas e escorregões, pois, como explicaram, é algo que acontece muito com eles.

Também acharam engraçada a cena em que um dos personagens propõe uma votação, em que teriam de "levantar as mãos". "Eram todos cegos amadores", diverte-se Antonio Carlos Grandi.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u491619.shtml