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Cães-guia – os melhores amigos dos cegos

por Lerparaver

Por Fernando Brederode Santos

Certo dia de Janeiro de 1999 foi um dia de viragem na vida de Augusto Hortas. Foi então que este cego, hoje à beira dos 51 anos, licenciado em Filosofia, casado e pai de dois filhos, funcionário público, recebeu um cão. A sua qualidade de vida deu um pulo.

“Deixei logo de chegar ao emprego com os pés molhados”, diz.

É que o cão que Augusto Hortas recebeu, e que por sinal até é uma cadela, não é um cão qualquer. É um cão-guia de cego. O primeiro dos animais ensinados e distribuídos pela única escola para o efeito existente no País, a da Associação Beira-Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV), com instalações em Chão de Vento, sítio próximo de Mortágua, no distrito de Viseu. Sem ter que pagar um tostão, Hortas foi lá buscar a Camila, esteve 15 dias a ser industriado e familiarizado com a utilização dela, naquilo que ali se designa por “estágio de formação da dupla, e quando regressou a Alverca, perto de Vila Franca de Xira, onde mora e trabalha, a sua capacidade de movimentação era outra. Não lhe aconteceu só deixar de pisar poças de água: acabaram-se os constantes choques e quedas provocadas pelos obstáculos levantados a quem não vê pois modelos arquitectónicos e hábitos de vida urbanos que não os têm em conta.

Porque a missão do cão de cego é fundamentalmente essa: desviar o parceiro do que quer que possa ameaçar-lhe a integridade física, ou sequer, causar-lhe desconforto. E que, logo de ser só poças de água, é que o que a bengala não pode detectar no solo – carros estacionados no passeio, camiões de porta aberta, caixas de camioneta, buracos no chão mal protegidos. São os sinais de trânsito baixos e seja o que for do chamado “mobiliário urbano” instalados onde peões circulam. São até os excrementos de outros animais. De tudo o cão desvia o cego, como o seu próprio corpo e o dele formassem um corpo só. Impede-o de atravessar a rua se avizinha algum carro ou de meter por uma escada rolante em sentido errado. Proporciona-lhe ainda apoio contra eventuais desequilíbrios através do arnês, peça metálica em forma de asa de cesto alongada que traz fixado ao tronco por altura do garrote e é, muito mais do que a trela, o elemento de ligação da dupla. E pode mesmo auxiliá-lo em operações como a utilização do multibanco, indicando-lhe o teclado.

Ensino prolongado.

Gama tão vasta de serviços exige um ensino aturado e prolongado. A Camila já tinha dois anos quando Augusto Hortas a pôde ir buscar, e é em regra essa a idade com que são entregues os seus congéneres. Como começam a ser ensinados aos três meses , é quase um ano de lições boa parte delas ministradas todos os dias úteis. E o período que ficou para trás não é de menor importância. Correspondeu à necessidade de se socializar o animal, condição do equilíbrio psíquico de uns cães que têm que ser mais controlados do que quaisquer outros. Insusceptível de ser assegurada na escola, essa pré-formação é confiada a famílias de acolhimento. Agregados a quem o cachorrinho é entregue e em cujo seio, sob a orientação dos técnicos de Chão de Vento aprende regras básicas de comportamento e se habitua ao convívio humano.

A família de Miguel Ferreira Martins, um mecânico de automóveis de Mortágua, é exemplar destes voluntários. Já vai no terceiro animal de cuja infância se ocupou. Agora tem a Fly, uma esbelta cadela preta, da raça Retriever Labrador, como todos os cães da escola, e que está à beira de ser atribuída, Um momento sempre penoso, “Da primeira vez, então, custou tanto...”, confessa Anabela, a mulher de Miguel Martins.

Não admira que a separação doa. Sempre foram treze meses de convívio permanente, seguidos de alguns em que, na fase inicial da aprendizagem, apenas duas vezes por semana e por umas tantas horas a cadelita deixava a companhia deles. Só mais recentemente é que, entrada no chamado “regime prioritário”, a Fly, começou a ir para a formação todas as manhãs, voltando ao fim da tarde. Quanto aos fins-de-semana, continuou a passá-los com os Martins, embora o mais frequente seja os cães nas mesmas circunstâncias recolherem ao Sábado e Domingo às instalações de Chão de Vento.

O valor de um cão guia de cego pronto para o trabalho está calculado em 2800 contos, informa Nuno Gouveia, responsável administrativo desta instituição de apoio aos deficientes visuais. Trata-se de um valor em que é irrelevante o preço do cachorro “em bruto”, por assim dizer o qual anda no mercado pela centena de contos. Nem aliás a escola o inclui nestes números, já que os animais lhes são agora assegurados pelos reprodutores do próprio canil, onde ainda há semanas nasceu uma ninhada. Mas trata-se também de um valor muito abaixo do real, como frisa Nuno Gouveia, por não considerar o o trabalho destas famílias de acolhimento incorporado em cada animal, e que ele qualifica de inestimável. De facto, se a alimentação, como vacinas e tratamentos, corre por conta da Associação, olhar por que ela nunca falte ao cachorro e lhe seja proporcionada em determinadas condições (sempre ração e sempre de uma mesma tigela, por exemplo, como defesa contra perturbações gástricas e até eventuais tentativas de envenenamento) é atribuição daqueles a quem foi confiado. Tal como assegurar-lhes um indispensável envolvimento afectivo. E o acompanhamento atento da sua evolução, de modo a permitir a correcção de inclinações perniciosas antes que se consolidem.

O controlo da psique.

Porque nem todos os cães nascidos em Chão de Vento servirão para a função para que estão destinados. Depois de uma primeira escolha, que destina à venda parte dos cachorritos, como pequena fonte de receita e por não haver possibilidade prática de os adestrar a todos, outros serão excluídos da formação por diversos motivos, mas que têm sobretudo a ver com a sua psique. Medos incontroláveis – como por exemplo a estrondos – constituirão o factor mais frequente. Mas também surgem casos de tendência para a distracção incompatíveis com uma tarefa que exige concentração permanente. Assim como de timidez e de falta de sociabilidade. Para não falar da na displasia da anca, doença congénita que condena a mais ou menos curto prazo o cão à deficiência motora, fazendo com que não seja compensador investir na sua formação, pois nunca poderia render os oito anos de trabalho que dele se esperam.

Não se registando acidentes, são assim oito os animais ali anualmente aprontados para guiar cegos. Um número que decorre do número de formadores. Cá, como em todo o lado, mesmo nos países onde a actividade está mais evoluída, a média de cães distribuídos por ano é de quatro por formador. E em Chão de Vento eles são dois, enquanto um terceiro não regressa de França, onde está a concluir o necessário curso na Association pour les Aveugles et Malvoyants.

Foi também aí que o tiraram Vítor Costa, de 29 anos, e Sabina Teixeira, de 30, os actuais formadores da ABAADV, durante 15 meses em que receberam luzes acerca de matérias como zootecnica, comportamento animal, veterinária e gestão de canil, além de serem iniciados na compreensão de aspectos da cegueira, nomeadamente a psicologia, necessidades e mobilidade do cego.

Com um bacharelato em Relações Públicas obtido na Guarda o Vítor e a Sabina com o seu alcançado na Escola Agrária de Coimbra, nenhum deles teria ponderado nesta saída profissional até responderem a um anúncio colocado pela Associação nalguma imprensa regional. Mas foram aprovados, até porque satisfaziam um à primeira vista surpreendente requisito dos franceses: não terem a menor experiência do adestramento de cães (o que pressupõe o entendimento de que hábitos nesta área poderiam estorvar a assimilação do método ali ensinado). E não parecem arrependidos, mesmo se os 175 contos que por ora ganham por mês não correspondem às exigências e responsabilidades do seu trabalho.

Vítor Costa vai já nos dez cães formados. Todos os dias, este filho da região comparece manhã cedo em Chão de Vento para dar uma vista de olhos ao canil e alguma ajuda ao tratador, após o que sai de carrinha para recolher a meia dúzia de cães a seu cargo nas casas das famílias de acolhimento e seguir para Mortágua ou mesmo Viseu, onde procede ao adestramento. Aí, um animal após outro, todos são repetitivamente submetidos aos exercícios que lhes inculcarão até ao fim da vida a obediência infalível a um conjunto nuclear de vozes de comando. São elas 25. Vão do “Avançar”, para o animal se pôr em movimento, ao “Esquerda” e “Direita”, para virar para um lado ou outro, e aos diversos “Buscas”: “Busca escadas”, para conduzir o homem até aos degraus que este sabe existirem no local, ou “Busca linhas”, quando o objectivo é uma passagem de peões, ou “Busca banco”, quando o que se pretende é um lugar livre num autocarro, num comboio, num café, num restaurante. E etc... sem esquecer o “Besonha”, (do francês _besoin), para que ela faça as necessidades em local apropriado, numa pausa do trabalho.

Preferência por Labradores

A quantidade de ordens que o animal tem que aprender a cumprir decorre da circunstância de, pela lei, o cão-guia poder acompanhar o cego para onde quer que seja. É também essa a razão da preferência por Labradores, além de se tratar de animais calmos, dóceis e inteligentes.

“Trata-se de um cão socialmente bem aceite”, sustenta Nuno Gouveia.

Sem deixar de ser vigoroso, o Labrador não possui de facto uma corpulência que o torna incómodo em determinadas situações (na utilização de um táxi, por exemplo) e muito menos um aspecto atemorizador, que afaste as pessoas. No estrangeiro, segundo a veterinária Filipa Paiva, grande entusiasta da criação da escola e também sua gestora, já se vão experimentando outras raças, como os Golden Retriever, e um cruzamento de Golden com caniche grande (do mesmo modo que tem vindo a ser posto de parte o Pastor Alemão, cuja a utilização apresentava uma componente secundária de defesa pessoal, e isso não só por ser excessivamente volumoso como por se verificar que essa faceta de agressividade se casava mal com o comportamento controlado exigida pela condução de um cego pelas ruas). Mas cão nenhum ainda terá provado tão bem nesta actividade como o Labrador. O que não impede que Filipa Paiva projecte testar um dia exemplares das raças portuguesas aparentemente mais calhadas. Quando para tal houver tempo, ou seja, abrande a urgência de abastecer de cães-guia os interessados.

Augusto Hortas confirma a aceitação que estes animais obtêm junto das pessoas através do exemplo da sua Camila: “Todos os dias há quem se me dirija, a fazer-me perguntas acerca dela. Por causa dela abordam-me agora desconhecidos que de outro modo nunca me falariam. Está assim a contribuir também para a minha integração social”.

A simpatia gerada pela Camila e os seus congéneres chega, aliás, a ser inconveniente. É o caso de lhe assobiarem ou emitirem sons de beijos, o que os desconcentra. Pior ainda, é o de lhes darem comida, o que além daquele efeito pode ter o de lhes desarranjar o estômago habituado apenas a ração.

Fora isso, quando estão com o arnês, que lhes transmite a noção inequívoca de que se encontram em trabalho, nada há que os desvie das obrigações. Em Chão de Vento foram intencionalmente familiarizados com um gato, para perderem qualquer agressividade, ou sequer curiosidade, para com esta espécie. Só o impulso sexual poderia suscitar neles uma indisciplina incontrolável, mas esse problema foi resolvido de forma expedita quando contavam um ano. São então castrados, quer cães quer cadelas. Triste mas necessário.

Poucos beneficiam

Mas se são poucos os cães capazes de dar bons guias de cegos, é também uma estreita percentagem de cegos que reúne condições para beneficiar dos préstimos de um cão desses. Há aproximadamente dez mil cegos em Portugal e, pelos cálculos da Associação, só uns 200 deles poderão formar dupla com um daqueles animais. Por vários motivos. Porque há quem não goste de cães, simplesmente. Ou tem alergia ao seu pêlo. Ou porque se é demasiado novo ou demasiado velho. Porque não se está para a maçada de manter o cão impecavelmente limpo, como é imprescindível num animal com direito de acesso a locais onde pessoas comem. Ou porque nunca se ganhou a suficiente mobilidade na rua.

Também há casos de oposição por parte da família. Um cego apareceu em Chão de Vento, desolado, a devolver o animal porque mulher e filhas, habituadas a protegê-lo, enciumaram perante o estreitamento afectivo da dupla. Como, em contrapartida, já outro confessar aos responsáveis da escola estar ali contrariado, apenas por pressão dos pais. E um casal salvar-se da ruptura graças à mudança introduzida pelo cão no seu quotidiano.

De qualquer forma, para 200 falta ainda à ABAADV adestrar muito cão-guia. Chegada a terceira formadora, serão doze os exemplares a distribuir anualmente. O que manifestamente pouco para as necessidades. Tanto mais que, como aliás já aconteceu num caso, haverá os exemplares prematuramente falecidos. E que dentro de sete anos se terá de começar de substituir os reformados. Para os quais a Associação, à qual não deixaram nunca de pertencer (podendo a todo o momento ser recuperados se se verificar que não beneficiavam do devido tratamento) terá de providenciar uma família de acolhimento. Isto, nos casos em que os cegos não quiserem conservá-los. Mas que, atingidos os dez anos, já não se encontram em condições e deixam impreterivelmente de trabalhar.

Começou-se tarde, a verdade é essa. E mesmo assim começou-se e prossegue-se a obra mercê da carolice de uns poucos. Foi o pai da Filipa Paiva, Júlio Paiva, um professor de educação Física ligado ao ensino de cegos, quem, verificada a existência em tantos países de escolas de cães-guia para cegos, meteu na cabeça que haveria que criar uma em Portugal. A filha deixou-se contagiar. E depois de muita vicissitude lá conseguiu ser ela a levar o projecto avante, aproveitando os apoios comunitários para converter num estabelecimento daquele tipo uma antiga escola de cães de caça. Hoje, passada uma fase pouco frutuosa de dependência de uma escola profissional local, a Associação autonomizou-se e está reconhecida como Instituição Particular de Solidariedade Social. Beneficia de um acordo financeiro com a Segurança Social, que lhe cobre 65 por cento do orçamento geral, e conta com um subsídio da Câmara Municipal de Mortágua, além de verbas de outros municípios onde residem cegos a quem proporcionou um cão-guia. Outro apoio, e substancial, vem-lhe de uma empresa distribuidora de uma marca espanhola de ração para cães, que fornece a comida necessária ao canil. Dispõe ainda das quotizações dos sócios e de donativos avulsos, estes últimos importantes mas sem comparação com os que é corrente receberem de particulares e empresas as instituições de apoio a cegos na maioria dos países evoluídos, com destaque, desde logo, para a vizinha Espanha. Mas nada disto permitirá à escola da ABAADV chegar tão cedo para as encomendas. Nem sequer lhe permitiria fazer o que vai fazendo, não fora a generosidade de um punhado de pessoas que por um salário muito abaixo dos 200 contos dedica os dias a uma obra que ninguém haverá que não julgue preciosa.