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Marco Aurélio Branco - Lutando contra as amarras da ignorância

por Lerparaver

Lutando contra as amarras da ignorância

Olá! O meu nome é Marco Aurélio Branco, tenho 25 anos e sou surdocego desde os 17, altura em que perdi completamente a visão.

Quero partilhar um pouco da minha grande história com todos os cegos e surdocegos, valorizando aqui mais a coragem e o espírito de igualdade enquanto serES humanoS.

Tudo começou numa tenra idade, tinha eu 8 anos e era uma criança normal. Mas um dia em que ia para a escola a pé com a minha irmã, um camião passou na estrada tão depressa e tão perto de mim que, dizem, foi um milagre ter sobrevivido àquele choque brutal. Felizmente, não me recordo de nada e dou graças a Deus por isso, porque ninguém deseja arrastar consigo uma recordação tão horrível.

Conto que a estrada onde tive o meu acidente era a antiga estrada nacional nº 1, uma recta que passa pela Nobre. Não existia nessa estrada qualquer tipo de protecção para os peões e os carros não abrandavam de velocidade, iam e vinham como senhores da estrada. Só eram obrigados a parar mais adiante, num segundo entroncamento cheio de sinais e tudo, porque ali era a zona industrial da Nobre. Foi à custa do meu acidente e de outros posteriores que a Câmara Municipal de Rio Maior abriu os olhos e fez o que há muito poderia ter feito!

Sinceramente, sinto-me aliviado por não ter ficado paraplégico ou sofrido um problema mental grave que poderia ter-me acontecido. Com um traumatismo fiquei surdo profundo de ambos os ouvidos e cego do olho esquerdo. Aguentei tudo ainda tão jovem, com uma imensa vontade de viver. Saí do coma profundo para uma nova vida que me esperava sem eu contar com isso.

Como o meu organismo estivera longamente frágil, ainda mal tinha recuperado e aos 13 anos fui apanhado por uma grave pneumonia, uma experiência horrível que também, felizmente, não tenho recordado. Para quê recordar-me de coisas tristes se não sou uma pessoa sombria? E com aquela pneumonia veio uma infecção hospitalar que afectou o meu olho que via bem.

O meu problema de cegueira deve-se a um descolamento de retina, mas os meus olhos continuam castanhos e muitas vezes as pessoas não notam que sou cego.

Com os erros médicos de ter sido operado três vezes num só mês, o meu olho direito sofreu bastante, mexeram-lhe demasiado e à toa, pois se a minha médica não sabia o que fazer não tinha de complicar mais. Vocês não desejariam que os vossos olhos fossem cortados ao meio e cheios de marcas de três operações sucessivas.

Contudo, a terceira operação foi a pior e a que me roubou a esperança de outros médicos mais experientes me ajudarem. E mais uma vez aguentei os agressivos exames e vivi interiormente a minha revolta, manifestando-a muitas vezes noutras circunstâncias da minha vida.

Terminei o nono ano e fiz um curso profissional de apenas um ano que havia na secundária. Não fui para o ensino normal e as minhas professoras e a minha família pensavam em arranjar-me trabalho, porque diziam-me que não havia nada para mim na secundária, que era tudo muito difícil e eu não teria professores e apoios para ficar lá. Mas onde iria tirar um curso profissional? Na ACAPO? Na APEDV? Na Sain? Não, porque eram associações para cegos e não aceitavam pessoas com mais do que essa limitação. Para o meu caso, seria o Colégio António Aurélio da Costa Ferreira, o único lugar para os surdocegos e ali os surdocegos não eram iguais a mim, porque muitos deles eram deficientes mentais e mais limitados do que eu. Também ali não tivemos resposta para o que eu queria, mas não me importei com isso, até fiquei intimamente feliz.

A minha família estava desiludida, porque achava que o meu lugar apropriado era no colégio dos surdocegos, onde estavam lá jovens iguais a mim, mas eu não me sentia igual a eles, não pensava como quem tinha limitações e não podia fazer nada. Não tinha culpa de ser teimoso com a minha família, bem sabia que me queria proteger e dar um futuro, que o trabalho para os deficientes estava péssimo, que as pessoas eram muito egoístas e ignorantes das outras.

Ficar em casa como se não existisse nada para mim, como se um surdocego merecesse a indiferença e o esquecimento da sociedade! Em Rio Maior não havia nada para os deficientes e com isso sentia uma grande vergonha de ser deficiente.

Fiquei à espera dois anos inteiros para receber do Ministério da Educação um computador equipado com braille que, no entanto, o meu curso chegava ao fim e népia! Se aqueles estúpidos políticos ajudassem quem realmente precisa de ajuda, de certeza absoluta que eu já poderia estar no secundário!

Na última hora em que ia desesperar, recebi os tais apoios técnicos com a ajuda da Gulbenkian. Assim, comecei a vencer muitos obstáculos e a progredir bastante, chegando a sacar muitas boas notas. Porém, o que mais me magoava era as pessoas acharem que eu não tinha capacidade e que os meus professores, muito compassivos, é que me faziam a papa. Isso magoava-me imenso e também o facto de as pessoas se dirigirem a mim com caridade ou perplexidade. Eu não era nenhuma atracção do circo ou de algo de extraordinário; eu não era O Marco surdocego isto ou aquilo; eu não era o adolescente que se afastava e fechava, desinteressado de tudo o que me rodeava. Não!

Fiz o secundário todo e, uma vez implantado e um aluno de mérito, ambicionei ser psicólogo, como se a minha escolha fosse o maior desafio que fazia ao mundo.

Porém, quase ninguém me apoiou na minha decisão, sentia-me muito sozinho e sem a minha família a meu lado. Um surdocego psicólogo? Que coisa tão estranha!

Dá para não acreditar!

Nenhuma universidade está preparada para receber estudantes surdocegos, porque mesmo que tenham núcleos de apoio ao estudante deficiente, eles são tão incipientes em relação aos surdocegos… Vistos de longe parecem uma maravilha mas de perto não passam de uma pequena sala com escassos recursos… Eis que para minha enorme surpresa me vi na prestigiada Universidade Lusófona, matriculado no curso de Psicologia! Actualmente, estou no terceiro ano da licenciatura, com todas as cadeiras feitas e com o meu esforço a ser recompensado com as boas notas que tiro.

Nunca me imaginei ir tão longe na vida e que o único colégio de surdocegos de Portugal me pudesse estar a ajudar a concretizar um sonho que não é só meu, mas de todos os surdocegos que se sentem discriminados e sem oportunidades de mostrar a si próprios o seu potencial. Vivem com as amarras da ignorância que se tem sobre a deficiência, mas a verdade é que não se conhece o tesouro imenso que há dentro de cada ser e que o faz saltar sempre as barreiras, com a coragem de superar as suas próprias limitações.