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Na sala dos livros brancos

por Lerparaver

Romana Borja-Santos

Os olhos nunca pousam no monitor dos computadores. As mãos passam com rapidez pelos teclados e, de quando em quando, fazem uma pausa para os dedos tocarem nos pontinhos brancos salientes abaixo. Branca é, aliás, a cor dos livros alinhados nas estantes das salas, todos eles sem “letras a negro”. Mesmo assim cheira a livros, a livros amarelecidos pelo tempo onde a humidade deixou as únicas marcas que contrastam com o picotado das páginas.

Na Área de Leitura Especial (ALE) da Biblioteca Nacional, em Lisboa, todos os dias se trabalha para que a leitura de obras em Braille ou em formato áudio seja cada vez mais diversificada e fácil para os deficientes visuais. Inicialmente designada como “Serviço para Cegos”, a ALE existe desde Dezembro de 1969 porque ler, para muitos, é juntar as letras a negro num fundo branco mas para outros é percorrer com os dedos uma folha branca ou, simplesmente, ouvir.

Isidro Rodrigues é director desta secção desde 2003, mas foi em 1968 que começou a colaborar com o serviço. Apesar da evolução tecnológica da sociedade nas últimas décadas, considera que esta está “menos desperta” para os problemas dos “outros”, “distraída pela enorme quantidade de informação que circula”.

Acessos difíceis Contudo, se a informação chega a todo o lado de forma cada vez mais eficaz o mesmo não se pode dizer de um deficiente visual que se dirija à ALE, já que as instalações da Biblioteca Nacional não estão preparadas para estes “inquilinos”, acusa Isidro Rodrigues. Três lances de escadas, duas portas de vidro, uma paragem na zona de segurança. Mais um lance de escadas e outras duas portas de vidro que abrem para ambos os lados e, por fim, uma discreta porta à esquerda indica o nome do serviço.

Um dos problemas apontados pelo director de 65 anos é precisamente o nome do serviço que “não diz nada” e leva as pessoas a pensar que se trata de uma “área com documentos em grego, árabe ou chinês”. Espera-se que, com a nova lei orgânica para a Biblioteca Nacional, a proposta de alteração de denominação seja aceite, passando a chamar-se “Área de Leitura para Deficientes Visuais”, o que permitirá uma divulgação mais eficaz.

Jerónimo Nogueira, professor de Filosofia no ensino secundário, é um dos leitores assíduos da ALE. Foi depois de ter cegado num acidente de automóvel que, durante a reabilitação na fundação Schein, lhe deram este contacto. Diz que utiliza qualquer formato, mas que “Braille é Braille e permite tirar notas”.

Isidro Rodrigues, licenciado em germânicas, partilha a mesma opinião. Sente que os áudio livros são essenciais para quem não sabe ler Braille, mas que nunca são “um encontro com o escritor”. Mesmo assim, tenta que as obras que produzem “deixem uma margem para o leitor as recriar”, já que “têm tanto valor quanto mais possibilidades houver de as interpretar”.

A ALE funciona como uma segunda casa. O espaço é familiar e, por isso, as bengalas brancas ficam à porta. Todos conhecem as regras e ninguém muda nenhum objecto de lugar sem avisar. É também conveniente que nenhuma porta fique entreaberta, para evitar “cabeçadas”.

Falta de condições

Dos 11 funcionários, apenas dois são normovisuais (pessoas sem deficiência visual), mas as tarefas são executadas por todos com “perfeccionismo”. Cada um sabe o que tem a fazer, mas “se for preciso faz-se de tudo um pouco”. Isidro Rodrigues diz que têm também “uma enorme ajuda por parte dos voluntários”. Contam já com mais de vinte e, uma vez mais, o problema é a falta de instalações, o que os leva a recusar mais pessoas. Os poucos computadores “da idade da pedra” são partilhados por todos e bloqueiam com frequência. O novo “software” instalado na Biblioteca Nacional não é compatível com os programas que o serviço necessita, pelo que só dispõem de uma versão provisória que se desliga de 45 em 45 minutos. O trabalho dos voluntários consiste em passar livros a computador ou em fazer leituras num estúdio de gravação para os áudio livros, disponibilizados em cassetes.

Os estúdios são apenas dois e com um horário limitado, tanto pelo número de horas como por necessitarem de um deficiente visual especializado, que controle a qualidade da leitura e domine os meios técnicos. Esta parte do trabalho bem como a impressão em Braille são realizados nas “catacumbas”. Umas escadas estreitas dão acesso ao local frio e escuro. O caminho não é fácil. O chão é irregular, com buracos e o tecto parece não resistir muito mais tempo. O barulho das agulhas das impressoras a cravarem-se no papel completa a imagem fabril. É por acreditarem na importância do que fazem que continuam, garante o director.

Isidro Rodrigues considera que “a leitura é muito boa para toda a gente” e, para os cegos, “fundamental”. “É uma porta para a informação. As pessoas vão na rua e lêem sempre os letreiros dos autocarros, os cartazes…e nós não, só temos o livro que nos põem à frente”. Apesar disso, defende que “o tacto é analítico, só vê o que está debaixo da ponta do dedo, enquanto que o olho é abrangente” o que “dispersa mais as pessoas”.

Para o director da ALE, “a década de 50/60 foi um salto tremendo para as pessoas cegas”. Com o aparecimento de centros de reabilitação, juntamente com uma “política de formação profissional”, “foram integrados em empresas”, em especial em trabalhos como “telefonistas ou ligados à metalurgia”. Sente que, hoje, voltaram “a ser o ceguinho ou o invisual no autocarro” e se as pessoas acham os “eufemismos importantes então faça-se a vontade”, queixa-se. No entanto, admite preferir a palavra “deficiente visual”, já que é mais abrangente, podendo-se nela incluir os “cegos e amblíopes”. Para além disso, “não chamamos aos surdos inaudíveis” e, de acordo com a etimologia da palavra, “invisual é aquilo que não é visível”, ironiza com um sorriso crítico.

Ruben Portinha, estudante de Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, diz não recorrer a este tipo de serviços em bibliotecas por dificuldades de locomoção, inerentes à deficiência visual. Para o estudante de 20 anos a “informática é hoje a grande ferramenta” tendo como endereços favoritos na Internet os sites “lerparaver” e “livresco”.

Enquanto luta contra a falta de apoios, a ALE vai trabalhando com os meios possíveis. Espera-se, porém, que tudo melhore e que a voz monocórdica e metálica, sempre presente, do sintetizador de voz também se humanize. Até lá vão recordando com boa disposição alguns pedidos de leitura caricatos e inesperados, como o de alguns camionistas que gostavam de ter cassetes com romances para os ajudar a passar as longas viagens.

Fonte: http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1312607