Caros leitores.
Na passada Sexta Feira dia 21 de Outubro de 2016, participei, na casa do professor em Braga numa tertúlia sobre mobilidade organizada pelo Fórum Bracarense, a pretexto da comemoração do seu 18º aniversário.
Partilho aqui o texto que escrevi de propósito para esta tertúlia.
Começo por agradecer o simpático convite que me foi dirigido pelo José Lopes Ferreira, ao qual acedi com todo o gosto e estou aqui, primeiramente na minha qualidade de cidadão, mas não posso de todo menosprezar a experiência e conhecimento adquirido nos mais de oito anos que já levo de dirigente associativo na delegação de Braga da Acapo (a instituição que a nível nacional representa os interesses das pessoas com deficiência visual), em que sou secretário da direcção.
Devo referir que o meu grande objectivo para esta tertúlia passa por partilhar convosco algumas ideias, situações concretas, conceitos que nos direccionem para as tão almejadas mudanças de paradigma. A minha intenção é a de conseguir fazer uma abordagem construtiva a favor da mobilidade inclusiva e nunca contra os poderes instituídos, porque acredito genuinamente na vontade e na generosidade dos vários agentes do poder político e acredito igualmente na sua preocupação para as questões inerentes à deficiência.
Entrando directamente no tema que nos trouxe aqui a esta tertúlia, devo dizer que não gosto assim tanto de falar em cidades acessíveis e inclusivas, preferindo cidades acolhedoras e democráticas.
Creio que são dois termos mais humanistas, e se pensarmos bem uma cidade só pode ser acolhedora quando cria as condições para que os cidadãos se sintam bem, e isso implica entre outras coisas poderem deslocar-se livre e autonomamente, e acederem a todos os espaços físicos sem qualquer espécie de constrangimento. Por outro lado uma cidade só é democrática quando for igualitária nas oportunidades que concede, onde não pode existir qualquer tipo de discriminação.
O facto de não gostar tanto assim de falar em cidades inclusivas e acessíveis, não significa que não goste dos termos acessibilidade e inclusão. Creio mesmo que inclusão é sinónimo de democracia, e a meu ver, a mobilidade que Braga tem oferecido nas últimas décadas tem sido demasiado restritiva, e por isso tem de se esforçar bem mais para passar a ser totalmente democrática.
Defendo por isso uma grande mudança de paradigma que passa por encarar a acessibilidade como mais uma componente obrigatória quando se projecta e executa uma obra, e não como algo que se vai aplicando de forma mais ou menos avulsa consoante as necessidades pontuais das pessoas que vão usufruir daquele espaço, e ao sabor da disponibilidade e da boa vontade dos responsáveis naquele momento.
Nem sequer deveria ser necessário trazer à coacção a legislação que já está em vigor, pois o pior que pode acontecer é adoptarmos uma política reactiva em vez de adoptarmos uma política activa.
Por isso, a minha ideia é que se valorize o chamado desenho inclusivo e universal, que significa que todos os produtos, serviços e infra-estruturas são concebidos de raiz por forma a permitir o acesso a todos os cidadãos independentemente das suas limitações físicas.
Da mesma forma que valorizamos a estética, a segurança, a qualidade dos materiais e outras variáveis, o mesmo devemos fazer com a acessibilidade. Neste caso ela seria apenas mais um ingrediente do bolo que depois será degustado por todos. É certo e sabido que se o bolo não tiver uma camada de acessibilidade nem todos o vão poder saborear, o que é altamente injusto, porque todos temos fome de inclusão!
Acreditem que vale muito apena o esforço para se criar e alimentar esta cultura inclusiva que não é de todo uma utopia e está perfeitamente ao nosso alcance.
Não tendo que ver directamente com mobilidade, permitam-me contar-vos uma pequena história.
Era uma vez, uma gigante tecnológica que decidiu implementar inclusão a sério, concebendo os seus produtos por forma a que uma pessoa cega, surda ou paraplégica possa ir a uma loja, adquirir um smartphone, computador, reprodutor de Música ou Tv box, e sair de lá a usar o equipamento sem ter necessidade de fazer qualquer adaptação.
A filosofia era muito simples. Todos os consumidores são potenciais clientes e todos os que fossem clientes eram-no de pleno direito, e por isso todos os produtos lançados para o mercado têm diversas ferramentas de acessibilidade. Quem precisa usa quem não precisa não usa! Esta não é no entanto uma medida inserida na caridadezinha nem na vertente da responsabilidade social. O que se pretende é abranger o maior número de clientes possível, rentabilizando também o investimento na acessibilidade, criando produtos de excelência pensados ao mais pequeno pormenor.
Pois bem. Este não é um conto de fadas! Essa empresa existe e chama-se Apple, e só trouxe este exemplo não para abrir uma discussão acerca das companhias tecnológicas, mas para vos provar que é possível incluir a acessibilidade no eco sistema de qualquer organização, assim exista vontade e sensibilidade para tal.
Voltando à questão da mobilidade em Braga, não posso deixar de vos dizer que em minha opinião, um dos grandes pecados capitais dos diferentes executivos municipais é o de objectivamente menosprezarem a acessibilidade. Como referi no início, sei que isso não é intencional, mas a verdade é que na prática, verificamos que da parte de muitos técnicos há um notório desconhecimento das boas práticas de acessibilidade, facto que poderia ser minorado caso o poder político ouvisse mais as instituições que são quem conhece a fundo os problemas, os legítimos anseios e necessidades do público que representam, e por isso estão em condições de ajudar de forma construtiva na busca das melhores soluções.
Um exemplo paradigmático do prejuízo causado por essa falta de diálogo sucedeu em 2013 a quando da intervenção ocorrida na zona do banco de Portugal e na rua dos chãos.
Já no final da obra, verificamos que aquela praceta, da forma como foi pensada iria ser muito perigosa para os cidadãos com deficiência visual, porque o piso era uniforme, não sendo possível diferenciar a zona dos peões da dos automóveis.
Este é daqueles casos em que se houvesse a preocupação com a acessibilidade na concepção da obra, seria extremamente simples resolver de raiz este problema.
A verdade é que, uma vez consumada a obra, fizemos chegar as nossas preocupações aos responsáveis. Fomos recebidos de forma muito simpática e cordial, e viemos com a garantia que tudo iria ser feito para ir de encontro às nossas pretensões, sabendo-se de antemão que a obra estava em fase de conclusão, e que por isso já tinham sido gastas praticamente todas as verbas disponíveis.
Mais tarde, verificamos que tal como fora dito realizou-se uma intervenção adicional, mas mais uma vez como provavelmente não houve o cuidado de consultar um técnico de acessibilidade, a solução encontrada não satisfez as pretensões da pessoa cega, porque neste caso limitaram-se a colocar um piso pitonado a assinalar apenas a passadeira. O problema é que mesmo admitindo a possibilidade da intenção ser só a de permitir identificar a passadeira, a solução encontrada não foi a adequada, visto que teria de ser usado um piso com uma textura diferente, mas uniforme, colocado em toda a dimensão da passadeira, e não umas esferas com bastante espaço entre si, que o utilizador de bengala passa facilmente pelo meio dessas esferas e não as consegue detectar.
E isto para já não falar do facto de não ter sido satisfeita a nossa pretensão inicial, e continuar a ser muito difícil identificar a zona dos peões, o que causa ainda hoje uma enorme insegurança quando ali se circula.
É curioso que já à mais de 7 anos a esta parte que alertamos insistentemente para a necessidade de ser criado um plano que preveja a colocação de pisos podotácteis nas passadeiras, que muito ajudariam os utilizadores de bengala a detetarem os locais de atravessamento, evitando assim terem de caminhar pela berma do passeio até encontrarem a rampa. Com um piso podotáctil, colocado a toda a largura e comprimento da passadeira, a pessoa cega detectá-la-ia rapidamente.
Temos também chamado a atenção para os imensos obstáculos presentes em muitos passeios da cidade, que dificultam muito a nossa mobilidade, sendo exemplo a sinalética colocada sem critério, de forma desordenada, quando idealmente deveria ser usada a berma do passeio, para que a locomoção não fosse afectada.
Um outro aspecto que urge ser revisto tem que ver com a flagrante supremacia que é dada à estética em detrimento da Acessibilidade/usabilidade.
Prova disso são aqueles pilaretes que foram colocados no largo que liga o Street Fashion à morgue, e também perto do centro comercial Santa cruz.
São pilaretes muito baixos, não têm uma base uniforme, e para além de ser muito difícil detectálos com a Bengala, já provocaram várias quedas de pessoas idosas com dificuldades de locomoção.
A propósito de Pilaretes já sugerimos diversas vezes a substituição daqueles em Ferro por uns pilaretes de silicone que são bastante mais maliáveis e não magoam. Tenho de reconhecer que alguns já foram substituídos, não com a celeridade que desejávamos, mas é justo reconhecer este esforço da parte do município.
Da mesma forma que também é justo reconhecer o investimento que têm sido feito na colocação de mais semáforos sonoros. Esperemos que este seja um investimento que tenha continuidade.
O mesmo já não se pode dizer em relação a outras solicitações que temos feito, como por exemplo os cartazes de publicidade, em que provavelmente não existe um regulamento que defina a altura em que o cartaz deva ser colocado, nem os materiais a utilizar. Digo provavelmente, porque na hipótese de esta matéria estar devidamente regulamentada, a situação é ainda mais grave.
Isto leva a que muitos cartazes sejam objectivamente um perigo real para a integridade física de uma pessoa com cegueira ou baixa visão, e imaginem que alguns cartazes até têm na sua estrutura objectos perfurantes.
Como puderam verificar, existem vários problemas que apesar de já virem do passado, ainda não foram resolvidos. No entanto, eu penso que a grande revolução nas mentalidades que urge operar passa por 2 aspectos essenciais.
O primeiro é o de encarar a acessibilidade e usabilidade como um investimento e nunca como um encargo ou uma imposição legal.
O segundo tem que ver com o público a quem se destina a acessibilidade. De uma vez por todas é imperioso interiorizar a ideia que a Acessibilidade não é para nichos, mas sim para o público em geral.
A este respeito, não posso deixar de manifestar a minha profunda tristeza, pelo facto de sermos praticamente só nós deficientes a lutar pela criação de políticas efectivas de promoção de acessibilidade, quando se analisarmos as coisas de forma objectiva e fria nem somos nós a camada populacional que mais vai beneficiar com o resultado positivo destas políticas, na medida em que todos os cidadãos serão em algum momento da sua vida temporária ou definitivamente pessoas com mobilidade reduzida. Desde logo os utilizadores de carrinhos de bebé, de malas, os idosos e naturalmente todos aqueles que são vítimas de lesões nos respectivos membros inferiores.
Nunca é demais lembrar que todos nós um dia seremos idosos, e que nessa altura teremos de uma forma ou de outra mobilidade reduzida. Como tal, é incompreensível que da parte do poder político não exista a noção da abrangência e do impacto positivo das medidas tendentes à criação de uma cidade acolhedora e democrática.
Neste sentido, é importante referir que um dos indicadores mais fiáveis para medir os níveis de felicidade de uma cidade é o número de pessoas idosas que circulam autonomamente na via pública.
Também sabemos que a qualidade de vida de um idoso é muitas vezes proporcional ao tempo que ele passa no exterior a fazer aquilo de que mais gosta.
Existe um estudo muito eloquente da câmara municipal de Lisboa que nos diz que 55 % dos idosos já sofreram quedas em passeios e que 9 em cada 10 têm medo de um dia vir a cair.
E quem é que não gosta de caminhar num passeio largo, com um piso regular e aderente, passadeiras bem iluminadas, bancos confortáveis para descanso, paragens de autocarro para que as pessoas se possam abrigar da intempérie entre outras comudidades? Certamente todos nós gostamos de passeios assim! E Não é por acaso que quando o passeio é estreito e tem muitos obstáculos, as pessoas tendem a caminharem na faixa de rodagem, na berma da estrada. todos sabemos que este é um comportamento de risco e que potencia imensos acidentes graves, e que pode ser evitado se os peões tiverem condições para circularem tranquilamente nos passeios.
Por isso, a acessibilidade e a inclusão devem ser um desígnio prioritário, porque uma cidade sem idosos e sem deficientes na rua não pode já mais ser considerada uma cidade feliz.
- Partilhe no Facebook
- no Twitter
- 3326 leituras