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Um percurso na vida

por Lerparaver

JOSÉ PEDRO - Um percurso na vida

Por José Pedro Amaral

Testemunho

Publicado na Revista Luis Braille da A C A P O - Associação de Cegos e Ambliopes de Portugal na 32 - Jan/ Fev/ Mar- 99

Pede-me alguém que escreva, de uma forma tão sucinta quanto possível - e espero não ser traído pela memória nem pela ingratidão - algo sobre a minha Vida de pessoa, enquanto deficiente inserido num universo, tal como a palavra o indica, único, meu e só meu; mas que, ao ser descrito, poderá, e espero que assim seja, dar uma imagem de quão difícil é para um ser humano ser diferente numa sociedade que não se conhece como tal, e porque a maioria dos homens, por isso, também não se conhece a si mesmo.

Assim, também eu, ao escrever estas linhas, e ao revisitar experiências vividas e sentidas, procurarei conhecer-me, e reconhecer-me, como homem, com limitações, que sou.

Tanto quanto me lembro, tudo começou no longínquo ano de 1962, tinha eu 3 anos de idade, quando os meus pais que, tanto quanto sei, não tinham nas suas famílias pessoas com limitações, notaram que eu estava a pedir para repetir tudo o que me diziam, com um lacónico "Hã?".

O que se passou, então, a minha memória não o diz. Mas está viva, bem viva, a correria que foi para procurar, com os meios médicos e técnicos, existentes na época, dar-me uma qualidade de vida mais desafogada, enquanto pessoa surda.

Os tempos eram difíceis, a 2ª Grande Guerra terminara havia já 15 anos. A Europa renascia, ainda, das cinzas. A estrutura social, com tudo o que a suporta, levou algum tempo a reorganizar-se; mas os meus pais, esses, não perderam tempo, nunca.

Procurou-se os médicos mais adequados, os técnicos existentes e os melhores métodos para que eu não perdesse essa maravilhosa ligação com o Mundo, que é a audição e, consequentemente, a fala. Neste contexto, os objectivos, e o sonho, foram atingidos, mas nem por isso os meus pais baixaram os braços. A tarefa não estava terminada. Jamais estaria; sei-o hoje.

Assim, começou a busca de uma escolaridade adaptada às circunstâncias. Os colégios sucederam-se, numa busca constante do mais adequado à época, e às terapias. Sei hoje, com conhecimento de causa, quanto isso foi positivo; e isto porque a permanência prolongada no mesmo colégio, com as mesmas pessoas, que poderão, muitas vezes, não ser as melhores, tanto como pessoas tanto como técnicos, leva, na maioria das vezes, à criação, quase inevitável, de uma ideia estereotipadamente errada de uma pessoa, e, muito mais quando ela é possuidora de alguma limitação, seja ela sensorial física ou motora.

Nessa busca, constante, de uma escolaridade eficaz surgiu a possibilidade, agora no ensino público, de frequentar uma "Escola Piloto "do Ensino Especial, neste caso para Surdos, a Escola Preparatória Pedro de Santarém.

Era um oásis num deserto! Num País onde faltava quase tudo, no aspecto técnico, ali tudo se superava com o que um ser humano têm de melhor de si mesmo: "O Calor Humano". E, esse, transpõe todas as barreiras, e, faz Maravilhas!

A vida continuou, com os seus altos e baixos. Havia que não descurar a integração natural, que parecia abalada, não só na família como socialmente. Parecia; mas não foi. Houve a constatação natural de que havia que fazer alguns ajustamentos atendendo às circunstâncias. Mas sobretudo, felizmente para todos, houve a constatação que para que essa integração, tanto na família como na escola e futuramente na vida social e laboral, passava por uma decantação do maior, e mais versátil tipo de informação que me habituou, e habilitou, a procurar, sempre, respostas às questões que colocava a mim e aos que me rodeavam. Tudo isto teve, e têm, uma importância incalculável nos dias de hoje. Deu-me a capacidade de poder abraçar matérias tão vastas que me mantêm ligado à cultura na melhor expressão da palavra; e citarei alguns exemplos: um curso de Iniciação à Fotografia e Composição Fotográfica, outro de Laboratório a Preto e Branco e Técnicas Especiais, um curso de Off-Set e uma acção da Formação em Direito do Trabalho com cerca de 190 horas.

É, também infinita a lista de pessoas, que desinteressadamente foram, e são ainda hoje, pilares que sustentam, toda a minha formação como Homem. Enumerá-los seria exaustivo, e, poderia sem o querer, ser injusto na omissão.

Surge entretanto o mundo do trabalho; como as bases eram, tanto quanto possível, seguras, não houve problema de maior; apenas problemas comuns a qualquer dos mortais, com e sem limitações, muito embora a época em que comecei a busca do meu primeiro emprego vivesse uma certa agitação social que a dificultou; foi difícil mas consegui.

Inicialmente com "Contratos a Prazo" num grupo de empresas de comércio de viaturas pesadas e máquinas para a construção civil e obras públicas pertencentes ao mesmo grupo económico, onde desempenhei funções administrativas, no sector comercial, e, mais importante ainda, no "serviço externo", que me permitiu, e permite ainda hoje, um conhecimento não só de grande parte do Sector Comercial como, também, da toponímia da Cidade de Lisboa, e não só.

Posteriormente houve uma situação, temporária, de desemprego, cerca de nove meses, a primeira; seguida por uma situação, de "aluguer temporário", mais uma vez com "Contrato a Prazo". Desta vez numa Empresa Pública onde desempenhei funções de 3º Escriturário, e ainda, de Técnico de Reprodução de Documentos. Esta situação durou quatro anos.

Após a publicação de um diploma no "Diário da República", o D.L. 358/89 de 17 de Outubro, que definiu as novas orientações do "Trabalho Temporário", seguiu-se nova situação de desemprego; desta vez nove longos e árduos meses.

Mas, a "Esperança é sempre a última a Morrer"; e assim sendo, fui contactado, certa manhã, por alguém que soube por um "apelo", publicado por amigos numa pequena publicação de circulação restrita, e, que acreditou nas minhas capacidades, depois de uma pequena conversa; neste caso um Despachante Oficial da Alfândega, que me ofereceu trabalho como Ajudante de Despachante. Tarefa que me foi facilitada pelos conhecimentos que adquiri na área do "Serviço Externo".

Só não fiquei por aqui, com muita pena minha, porque se aproximava o fim das "Barreiras Alfandegárias", e, com elas, grande parte dos "Despachantes Oficiais" Mas, até hoje, foi, sem dúvida alguma, a melhor experiência, quer de trabalho quer Humana, que alguma vez tive.

Por fim, seguiram-se 7 (sete) anos e 65 dias a "Recibo Verde" na Administração Pública; que foram seguidos de 7 (sete) meses e 5 (cinco) dias de "Contrato a Termo Certo"; precedido de Concurso Público para efeitos de integração, legalizada, no "Quadro do Pessoal" da Escola de Pesca e da Marinha de Comércio ; hoje estou na Função Pública de pleno direito.

Durante este "percurso", surgiram alguns problemas, pequenos na altura em que se começaram a manifestar, a nível da visão. Nova corrida aos médicos. Diagnóstico: Síndroma de Stagardt. Segundo parece, esses problemas sempre existiram mas de forma incipiente, até porque, sabe-se hoje, o Síndroma de Stagardt é congénito, só que, muitas vezes, manifesta-se de uma forma tão variada, e tardia, que é, ainda hoje, difícil fazer um diagnóstico precoce e mais difícil, ainda, um prognóstico seguro.

Bom, a vida foi correndo. Novas adaptações houve que fazer. Como diria um brasileiro: inevitável....né? E, a meio dessas adaptações, surge...a surdez quase total, à voz humana, apenas ficando só com ruídos sem interligação com o ambiente. Tornei-me, portanto, um surdocego em potência, com necessidades muito específicas, nomeadamente no que toca à comunicação, mobilidade e interacção com o ambiente. Como diria o outro: nova corrida, nova etapa. É o ciclo natural da vida. Tenho para mim que quando surge uma dificuldade ela deixa de o ser; passando, acima de tudo, a ser um ponto de partida. E, assim sendo, vou agora começar uma nova etapa desta, ainda curta, Vida. Estou, presentemente, a frequentar um curso de formação profissional, na área da informática, e, futuramente, com os conhecimentos adquiridos procurar dar todo o meu melhor, possível, nas funções que hoje desempenho; pois estou a desempenhar as funções de Assistente Administrativo (ex- 3º Oficial), na Escola de Pesca e da Marinha de Comércio, e, futuramente, no seio da A..P.S. - Associação Portuguesa de Surdos, à qual pertenço, criar de raiz o D,A.,P.Sc. - Departamento de Apoio à Pessoa Surdocega. É um desafio... mas a Vida é isso mesmo: um autêntico desafio!!

Como diz o escritor Richard Bach em " A História de Fernão Capelo Gaivota": "Vê mais longe a Gaivota que voa mais alto."

E, Eu não tenho medo das alturas. Conheço-me suficientemente bem para embarcar em novos e promissores, desafios.

Ao longo de todo este "Percurso na Vida" foi implícita uma afirmação de um Prémio Nobel da Literatura que define, muito bem, a postura que sempre me ensinaram e Eu adoptei:

"O Homem não foi feito para a derrota. O Homem pode ser destruído, não pode ser Vencido." Ernest Hemingway

O meu passado é a razão do Meu Ser; o presente a preparação do Meu futuro."

José Pedro Amaral

(1999-02-24)

Comentários

Olá Zé!

Não sei se te lembras de mim!

Sou irmâ do Ptanio, lembras-te?

Estava a navegar na Net e como especializei-me em Educação Especial, tive curiosidade em saber mais sobre surdocegueira.

Se realmente és tu manda-me um mail, está bem?

Beijinhos grandes