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- blog de Anacristina

Percurso da minha vida

por Anacristina

Escrevi um artigo falando sobretudo das intervenções cirúrgicas. Agora conto-lhes como começou o meu percurso do braille.
Aos cinco anos de idade entro para o instituto de S. Manuel. Não foi difícil a minha habituação. Lembro-me que nas primeiras duas semanas senti a falta da família, mas adaptei-me rapidamente ao novo ambiente do colégio, ao contrário das minhas duas colegas que estariam sempre comigo. As duas Tânias! Como me lembro das travessuras que fazíamos as três! E olho para trás e lembro-me que hoje não tenho aquela folia, aquela vontade de brincar, aquele sorriso que tinha... hoje sou, talvez, muito mais resingona... muito mais! Não sei se é bom, se é mau. Mas às vezes tenho saudades daqueles tempos em que era pequenina e que era inocente, assim como as duas Tânias. Tínhamos as três feitios totalmente diferentes. A Raquel era muito envergonhada, mas muito vaidosa, sempre à espera que eu, ou qualquer companheira de quarto ilogiássemos os seus perfumes, as suas roupas novas, etc. A Tânia Cristina, apesar de ser da nossa idade, não parecia. Muito mais alta! Era a mais alta de nós as três. Não era tão envergonhada como a Raquel. Era mais aberta. Havia por vezes aquelas birras entre nós as três, a Raquel queria sempre que a Tânia Cristina não fosse minha amiga, exactamente porque eu sempre fui uma pessoa que sempre disse aquilo que sentia. E ela, por um lado, não gostava de mim por causa disso. Mas eu e a Tânia Cristina dávamo-nos muito bem. Porque para nós não havia vaidade, não havia nada. Éramos as mais parecidas, até no feitio!
Mas quando brincávamos, brincávamos as três. Era divertido.
Até que me apresentaram a primeira folha escrita em braille. Eu tinha um grande sonho: aprender a ler. Mas os meus familiares diziam que era impossível pelo facto de ser cega. Mas pegava em revistas e fingia que lia e inventava as minhas próprias histórias. Daí, talvez o gosto pela escrita.
Por intermédio da Dr.a Luísa, entro para o instituto. E quando me apresentam a primeira página em braille... lembro-me do entusiasmo quando me disseram:
- isto é o braille. Vais aprender a ler como os outros.
Que notícia tão feliz! Mesmo com quase seis anos, lembro-me que senti essa grande alegria... se bem que a primeira vez ainda me perguntei como era possível ler aqueles pontinhos... quando as coisas dos outros eram lisinhas! E apresentaram-me a máquina de braille, depois aquelas folhas horríveis de zinco. Simplesmente detestei aquelas folhas de zinco. Não era tão agradável como ler numa folha de papel.
Depois apresentam-me a régua braille, com divisões de células braille. Tínhamos de encaixar os preguinhos em cada buraquinho de cada célula para fazer a letra pretendida.
Depois apresentam-me o cubaritmo. E eu sempre detestei matemática! Resmungava sempre:
- cubaritmo não!
O cubaritmo era um quadrado com vários encaixes onde se encaixavam os cubos com todos os números para se fazerem as contas.
Entre a actividade de aprender o braille tinha-se também educação musical, que também gostava. Actividades manuais, AVD, para alguns houve a dactilografia. eu não sei o que é, porque nunca participei nisso. Mais tarde, surgiu também a Terapia Ocupacional, a natação... e a orientação e mobilidade. Tenho de confessar que nas primeiras aulas fui um zero à esquerda! Não gostava quando me mandavam ir ao encontro do cilindro em linha recta, muito menos a bater palmas à frente e atrás das costas! Não intendia o porquê deste exercício! Depois tinha de fazer equilíbrio na trave, que abanava imenso e não era o meu forte. chegava às escadas, em que tinha um encaixe para um dos pés, quando tentava passar com o outro era tombo certinho! Enfim... quase sempre caía.
Depois tinha de desenhar com legos no chão linhas rectas, perpendiculares, oblíquas... e acreditem, esse era a pior parte da aula! Não intendia nada daquilo e sentia-me quase sempre ralada quando me diziam:
- desenha uma linha recta
- uma perpendicular
- um quadrado...
e por aí adiante. Apesar de tudo, ainda preferia o movimento!
Até que me puseram na mão a primeira bengala. Senti-me mais feliz. Mas... havia de aprender a fazer a técnica! Puseram-me dois cilindros à largura dos ombros e tinha de acertar nos dois. Tarefa difícil, porque fazia doer o braço, porque tinha pouca pontaria. Mas, com muito esforço, consegui! Mas... que estupidez! Por isso não sei se é bom ser-se pequeno... queria sempre a técnica cruzada! Porque era a que dava menos trabalho...!
Fui para a rua a primeira vez com bengala! Que situação nova! Não sei se senti-me feliz, se envergonhada. a bengala mostra que somos cegos e eu naquela altura ainda não compreendia que era necessário que os outros soubessem, até porque havia uma maior ajuda. E tinha sempre a professora a repreender-me quando não a usava. Quanto menos a usava, melhor. Até... até que... como ela disse, recordo-me perfeitamente
- quando deres uma valente cabeçada ou um valente tombo, quero ver se não andas com a bengala.
e eu com orgulho:
- não, professora! isso nunca!
Não sei porque tinha tanto medo de usar a bengala. Talvez pelo facto de saber que outros me gozariam... ou por ainda ter a mentalidade muito verde!
Mas esso aconteceu na escola Gomes Teixeira. O valente tombo tão "esperado" pela professora.
Claro... a partir daí, começou a ser diferente. Mas ainda com alguma relutância. Até foi difícil convencerem-me de que a independência era importante e hoje sou a primeira a desejá-la! talvez porque a minha avó era demasiado exagerada nas protecções. em certa forma, acho que até me prejudicou, porque não tinha a noção de que o mundo era outro. E acho que lho disse um dia. quando entendi que a vida não era só a protecção dos outros... se bem que ainda hoje ainda há muito, mas muito para recuperar! Acho que intendi isso tarde demais e acho até que me sinto arrependida. Depois de tantos avisos... e no entanto ainda estou a tempo!
Os meus progressos nas aulas eram bons. orgulhava-me com isso, mas a maldita matemática... sem palavras.
O que me seduziu mesmo foi o português, a história, as ciências também, mas não tanto.
Agora estou no décimo primeiro ano. Acho que a boa aluna foi diminuindo para uma aluna razoável. Mas enquanto for assim... estou a seguir Literaturas Modernas. Tenho português, francês, inglês, latim, literatura portuguesa. e as restantes são obrigatórias como a filosofia... que também já gostei mais! lógicas formais, não são o meu forte. A filosofia tem demasiadas coisas para decorar como lógica formal, saber o tipo de falácias, etc etc.
E vamos ver como é que isto continua! Sou a primeira, finalmente, a desejar que seja tudo muito melhor!

Comentários

Eina, tiveste um percurso de vida muito bom !! lol
Quem dera q todos os cegos tivessem um percurso idêntico .. alguns deverão pensar .... q sortuda !! lol

Eu quando era pequenino gostava muito de jogar legos e de brincar às pistas de carros e comboios ... e fiquei muito triste na altura pq o meu priminho tb pequeninho deu cabo da minha pista ... !! lol
Adorava ver desenhos animados ... !!

Eu cheguei a tomar ampolas de crescimento, 1 por mês, q custavam cerca de 10 contos, o meu pai teve quase, quase a vender o carro ... !!
Depois o estado passou a comparticipar a 100%
Compramos casa, e houve uma época muito difícil em que só havia o essencial, alimentação e pouco mais, nada de gelados, doçarias ... !!
O meu pai fez uma máquina de bobinar cones de fio e eu aos fins de semana e à semana passava horas e horas lá dentro ... enquanto q os meus colegas brincavam cá fora !!

Agora é tudo diferente !!
Mas sempre consegui supreender os meus pais pela positiva e ... se cheguei onde tou agora ... devo muito a mim mesmo e aos meus pais ... !!
E tb foram as dificuldades q passei, que me ajudaram a chegar onde estou, pra não passar necessidades ... !!
Mas sei valorizar isso ... a minha irmã fez casa recentemente e eu de vez em quando ajudo-a e tb à minha afilhada ... para q não passem por privações ... !! lol

Eh pá... Grande descrição... a tua escrita é uma coisa... emocionante!Continua!

Comparando o meu percurso com o teu, acho que tiveste a sorte de, nas aulas de Orientação e Mobilidade, fazer exercícios que te ajudaram a entender melhor determinados percursos, pois concerteza que quando te mandavam fazer desenhos de uma maneira ou outra, conseguiste lá chegar mais facilmente do que uma pessoa que não passou por estes processos.

Olha, eu acho que pelo menos uma das Tânias que referes foi do meu tempo. Tinha ela 4/5 anos quando a conheci... Lembro-me que o nome dela era Tânia Raquel Ferreira de Castro. Confirmas?

Se tiveres aí o contacto dela, depois hás-de passar-me pelo skype ou assim; na altura era uma miúda bastante promissora. Lembro-me que há tempos, a professora Deolinda de Formação Musical elogiou-a por ter um bom ouvidinho para a área.

Beijinhos, e fica bem.
Tiago Duarte

Tiago Duarte

Olá Ana, Também concordo que apesar de tudo tiveste uma boa infância. Eu aos 4 anos fui para o Centro Hellen Keller, no ^Restelo em Lisboa. Em vez de me deixarem brincar com as outras crianças puseram-me logo o braille e a máquina de braille, eu gostava de aprender, mas gostava mais ainda de brincar com os legos e as vezes escondia-me para poder brincar com eles. Via muito pouco mas só uns anos mais tarde na escola oficial soube o que era uma bengala. No tempo do Keller onde eu brincava mais era nas aulas de trabalhos manuais que adorava e na educaçao fisica. beijinhos Ana msn: ana.golfinha@gmail.com