Caros leitores.
Na passada terça feira, 19 de Junho de 2018, tive a honra de participar num debate organizado pela Acesso Cultura e Rede de Museus de Vila Nova de Famalicão, em que cujo o tema foi: Acessibilidade: O que impede as boas práticas?
O resumo deste debate estará disponível brevemente no site da Acesso cultura.
https://acessocultura.org/
Partilho convosco o texto que escrevi de propósito para a minha intervenção este debate.
A pergunta para este debate é muito desafiadora, e a resposta só pode ser provocadora.
Falamos muito de boas práticas, evocamos muitas vezes a legislação, mas se me permitem, digo-vos que prefiro falar em acessibilidade, porque é algo muito mais concreto e palpável.
E neste sentido eu não tenho dúvida em dizer que o principal impedimento à promoção de uma política conducente que vise a criação de espaços e serviços acessíveis é o incumprimento reiterado da lei, e fundamentalmente da convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, que no seu artigo 30º não deixa margem para dúvida, e define como direitos fundamentais o acesso dos deficientes à cultura, ao lazer, ao desporto, e inclusivamente à própria recriação, desenvolvendo assim o seu potencial artístico, criativo e intelectual, não só em benefício próprio, mas também com o propósito de enriquecerem a sociedade em que estão inseridos.
Este artigo é tão específico e tão claro que fala na obrigatoriedade de permitir às pessoas com deficiência desfrutarem em igualdade com os demais de acesso a programas de televisão, teatro, cinema, museus, bibliotecas, turismo e monumentos e locais de importância cultural.
E portanto se estamos a falar de um direito fundamental, é altamente redutor cingirmo-nos exclusivamente à nossa própria legislação, que mesmo assim tem tido alguns avanços importantes, mas eu creio que esta questão deve ser vista à luz dos direitos humanos, e quem o diz não sou eu, mas sim a convenção das nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência que Portugal assinou, e como tal se vinculou voluntariamente.
Neste sentido eu creio que precisamos de um tempo novo.
Nas últimas décadas, a luta hercúlea das associações de deficientes tem primado sobre tudo pela sensibilização. Acho que devemos claramente mudar o foco, e adoptarmos uma postura muito mais proactiva e usarmos todos os meios que estão ao nosso alcance para fazer valer os direitos das pessoas que representamos, criando assim uma base robusta de conhecimento e sinergias que potenciem respostas concertadas, visto que independentemente da barreira e da limitação existente, a inacessibilidade afecta-nos a todos de igual modo, e não nos podemos acomodar nem pactuar com esta descriminação.
É verdade que não podemos discutir a acessibilidade no sentido lato do termo, porque não podem ser misturadas as questões referentes à acessibilidade ao meio físico e a acessibilidade à oferta cultural, mas aquilo que devemos exigir é que todas as soluções sejam sempre criadas de raiz na óptica do desenho universal, e as associações que legitimamente representam os interesses e os direitos das pessoas com deficiência são as que melhor estão preparadas para responder aos desafios exigentes que se colocam, e por isso é fundamental que sejam ouvidas e tidas em conta.
Um outro impedimento que afecta a sociedade em geral, mas em maior escala as pessoas com deficiência prende-se com a visão elitista que muitos têm da cultura.
Creio que neste particular temos de ter o espírito auto crítico e a humildade suficiente para reconhecer que também nós próprios deficientes não lhe damos a devida importância. Apesar da pouca oferta que existe actualmente, mesmo assim ela tem tido uma procura altamente residual, o que representa na prática um enorme entrave porque, embora não seja uma justificação aceitável, acaba por desmotivar e desincentivar a promoção de eventos culturais acessíveis.
Não sendo de todo admissível que se veja esta questão com o foco principal na perspectiva de uma lógica de mercado, temos de ter o equilíbrio suficiente para não descorar a importância que tem a procura na relação com a criação da oferta.
No entanto, da mesma forma que o estado tem por missão nobre incentivar a criação de hábitos culturais nos cidadãos, é preciso ter-se a noção que no caso da população com deficiência esse esforço tem de ser maior, até pelo contexto histórico de exclusão que nos tem afectado.
Uma outra ideia que quero partilhar convosco é a de que muitas vezes tendemos a achar que determinado investimento vai beneficiar apenas um nicho de mercado, mas a nossa experiência diz-nos que no caso da acessibilidade, isso não é bem assim.
Por exemplo quando um museu decide audiodescrever a sua oferta, isso vai beneficiar obviamente quem não vê mas também muita gente que pode através do áudio aceder a muito mais informação do que acederia através da leitura de textos muitas vezes colocados em zonas pouco acessíveis, com tamanhos de letra reduzidos etc.
E a este respeito posso dar-vos o exemplo do oceanário de Lisboa que até à bem pouco tempo disponibilizava um áudio-guia multiling que era requisitado por muita gente sem problemas de visão que se sentia mais confortável a ouvir a informação enquanto visitavam o espaço.
Falando agora sobre a especificidade da deficiência visual, sem dúvida que o recurso mais importante a ter em conta é o da audiodescrição, que consiste em fazer chegar, através da palavra, informação que os olhos da cara não conseguem captar. Como todos sabemos uma pessoa cega para ver precisa de ouvir, e portanto este é um recurso fundamental quando queremos passar informação e falamos de acessibilidade à oferta cultural.
Para além disso, podemos contemplar a criação de maquetes em relevo, e sempre que possível a criação de experiências que potenciem a utilização do olfacto, do tacto, do paladar e da audição.
Evidentemente que deve ser analisado caso a caso, daí ter dito que é obrigatório que sejam consultadas as associações bem como as empresas que estão ligadas à produção de conteúdos acessíveis, porque se a acessibilidade é uma área específica onde trabalham inúmeros profissionais, obviamente terá de ser encarada pelos agentes culturais como um trabalho técnico especializado.
E este paradigma é a meu ver muito importante, porque a Acessibilidade, sendo transversal a tudo, não pode ser vista como uma coisa menor, tratada na base do amadorismo, porque quando falamos em acessibilidade, estamos desde logo a falar em democracia. E como é do censo comum, ela, a democracia, tem custos.
Mas a verdade é que o caminho rumo a uma sociedade verdadeiramente democrática e inclusiva implica soluções de compromisso que envolvam todos os agentes culturais e os cidadãos, independentemente das suas limitações físicas. Mas creiam que é um processo de aprendizagem e crescimento mútuo que nos vai enriquecer a todos.
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