lDesde menina. Desde que apalpei aqueles seis pontinhos Braille e compreendi sua forma de associação, desde que aprendi a juntar palavras, vivo entre livros. Mas antes a minha leitura era de barriga.
Isso mesmo. Leitura de barriga. Eu pegava um livro na biblioteca da escola, deitava na minha cama e devorava as coisas do mundo da literatura, o livro grande em cima da minha barriga.
Foi assim com o mundo encantado de Monteiro Lobato, os clássicos da literatura brasileira, A Cabana do Pai Tomás.
Agora a leitura não pede barriga, mas um duro trabalho braçal. Eu digo que é como tecer e destecer o manto de Ariadne.
Explicando. Entro na livraria como todo mundo, compro o livro que quero e zás!
Volto para casa, abro meu scanner hp, e começa o trabalho de digitalização, para ter acesso ao impresso.
Coisa de louco, quando a gente sabe que todo livro, na atual conjuntura informática, antes de ser impresso, é digital! Então é como se eu voltasse no tempo, para desenredar o digital do impresso, sabendo que nos bancos de dados do mercado editorial, o digital ta prontinho, sem sujeira, sem problemas de formatação, prontinho para virar impresso de novo, prontinho para gerar cifras e mais cifras no grande sorvedouro mercadológico do balcão das livrarias.
Sou criminosa? Sou pirateadora de livros?
Sou uma espécie de livreira de Cabul paraibana a fazer cópias e mais cópias dos livros que quero ler?
Não para todas as perguntas. Não vendo o fruto do meu trabalho braçal. Apenas leio o que digitalizei, refém da voz sintética do meu computador.
Chegará o dia em que os editores de livros destravarão o selo da sua falta de vontade política e se sentarão à mesa das negociações, para tratar conosco, centenas de milhares de pessoas cegas, acerca da acessibilidade ao livro?
Chegará o dia em que vou à livraria, compro meu livro, no formato que desejar, para leitura de barriga ou áudio leitura?
Trinta e uma linhas escritas, já agora. Quantas blogadas mais serão necessárias para o destravamento do selo da falta de vontade política dos editores de livros?
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Comentários
comentário
Olá Joana, se soubesse como a entendo! Mas eu ainda faço pior! O meu exercício de braços passa por digitalizar milhares e milhares de páginas para conseguir acompanhar a matéria da faculdade como os meus colegas, que se limitam a ir a uma livraria ou biblioteca, abrir um livro, folhear e já está. O meu livro demora o triplo do tempo e dá o tiplo do trabalho, mas com paciência e muita força de vontade, foi graças ao meu scaner que consegui ter sempre excesso de material para estudar e consegui concluir o meu curso com sucesso. De facto, é pena que não disponibilizem mais livros em formato digital. Essa acção deveria partir dos produtores ou das editoras. Mas o que se passa com livros, passa-se com dicionários e gramáticas impossíveis de digitalizar.
Obrigada por chamar a atenção para este ponto tão importante e fundamental para os cegos.
Atenciosamente,
Madalena Ribeiro
Será por isso?
Querida Madalena, será por isso que amamos tanto aos livros? Por que os compramos, e passamos horas tentando imaginar o que está ali dentro daquela caixinha cheirosa, cheia de traçados indecifráveis aos nossos dedos? Será que amamos tanto os livros por escanneá-los, desbravar a suor e luta o seu conteúdo? Ser cego é também um exercício de paciência, não é, minha cara? Um exercício de aprendizado. Um exercício de luta!
Beijos a você, com carinho.
gostei
para além de bem escrito, com graça, suave, num estílo que gosto. é verdade e verdadeiro carregado de razão... havemos de lá chegar, até havemos de chegar ao dia em que já não haverá mais cegos... continue, cumprimentos