Ana Maria Fontes
Recentemente uma colega de trabalho convidou-me a depor sobre a minha experiência de vida enquanto pessoa cega de nascença para três professoras normovisuais que frequentavam um curso de aprendizagem do sistema braille.
Entusiasmada com o interesse do meu pequeno auditório, esqueci que o tempo não passaria mais devagar para nos ouvir; por isso, quando enfim o estômago nos impôs disciplina, dirigi-me apressadamente para a paragem na esperança de que um atraso providencial me permitisse ainda apanhar o autocarro que eu queria. Mas a providência castigou-me, talvez por eu ter sacrificado ao brio profissional as necessidades da família que me esperava para almoçar.
Na iminência de esperar meia hora, pedi boleia a um colega que mora para os meus lados: sempre chegava mais cedo. "Se eu já cá não estiver quando passares, não te preocupes", disse escusadamente.
Viria a arrepender-me desta recomendação, pois perto da hora marcada surgiram as dúvidas: e se ele não me vê? E se ele me vai procurar a outra paragem? Quis falar com ele; tinha saído há minutos.
Quase em desespero chamei um táxi, sentindo-me mal por não ter feito isso logo. Desta vez descrevi bem o local onde me encontrava e informei que trazia uma bengala por ser deficiente visual, para facilitar a minha identificação.
Palavras não eram ditas, chega o meu colega. Vou? Espero? Tinha de decidir rapidamente. E decidi a favor da ânsia de entrar em casa, contra a consciência que não parava de me constranger, mostrando-me o motorista que eu acabava de defraudar.
Impossível almoçar sem pedir desculpa. "Estávamos agora mesmo a discutir o caso", falou do outro lado da linha a voz decepcionada a quem eu contara a minha história. "Nós gostamos de vos ajudar, atendendo à vossa situação; e vocês fazem isto!"
E vocês fazem isto! Estremeci. Verguei ao peso da responsabilidade. Já não era só o meu procedimento que estava em causa; era também a imagem da classe. Da classe à qual pertencemos, queiramos ou não, pelo facto de sermos cegos.
"Estou disposta a pagar o prejuízo. Quanto é?" perguntei prontamente, com a humildade de quem se reconhece em falta.
"Olhe, quando precisar de um serviço, chame o meu colega", aconselhou, agora cordial.
O colega não estava disponível. Mas deixei, para lhe ser entregue, a quantia que me pareceu justa.
Já que não conseguimos libertar-nos das generalizações, já que um comportamento individual, bom ou mau, continua a ser extrapolado para o colectivo, não seja por minha culpa que motoristas por princípio solícitos deixem de o ser; não sofram outros as consequências das minhas falhas. Vá-se o dinheiro, fique limpa a imagem da classe.
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Comentários
Problemas dos deficientes visuais em qualquer parte do mundo:
É incrível saber que ainda em qualquer parte do mundo o que um cego faz ainda continua refletindo na imagem de todos, como se todos pensassem e agissem sempre da mesma forma.
São até parecidos fisicamente!! É comum você emcontrar uma pessoa na rua e ela te dizer: conheço uma pessoa cega que é tão parecida com você... Ou então, pensam que você é aquela pessoa que conheceram há muito tempo atrás, mas que pelo jeito só repararam que era cega.