* por Carlos Ferrari
EEPG Professora Inah de Mello, segunda-feira à tarde, hoje o dia está ensolarado... Foi assim, que comecei uma jornada que transformaria minha vida. A máquina Braille Perkins, emprestada pela escola e uma sala lotada de crianças normais faziam parte de um cenário sonhado por mim e principalmente pelos meus pais, que acreditavam que o estudo era a única cura para qualquer problema e também para minha deficiência.
Meu pai, Sr. Sebastião, então metalúrgico, cursou só os quatro primeiros anos e foi diplomado, segundo ele, diante de uma grande comemoração de toda a família, regada a mortadela e Tubaína.
Minha mãe Climéria, dona de casa, infelizmente teve de parar antes. Porém as escolas entraram definitivamente em sua vida logo em meu primeiro ano de vida. Como uma heroína, ela lutava por minha educação incansavelmente, na busca por livros em Braille, pela doação da máquina Perkins, pelo espaço nas diferentes escolas que estudei. Os dois repetiam sempre: filho, se quiser vencer tem de estudar, e estudar em uma escola normal!.
Assim foi feito. E além de português, ciências, matemática, e outras disciplinas, tínhamos aulas diárias de inclusão. Essa disciplina não tinha professor definido e nem era parte do currículo da escola, foi descoberta por nós crianças que entre brincadeiras, pequenas brigas e muitas perguntas encontrávamos respostas que talvez resolvessem problemas gigantescos de caráter social.
Uma das principais lições que todo ano era reforçada, e hoje como professor ainda faço questão de exercitar, é o potencial das limitações.
Descobrimos que quando existe alguma deficiência, existe também a vantagem de se lembrar disso o tempo todo. Não dá para esquecer ou jogar de baixo do tapete. E aí, é transformar isso em uma grande alavanca ou em uma grande cortina.
A alavanca faz com que cada limite se transforme em meios para alcançar potencialidades escondidas e a cortina serve como esconderijo dos desafios que a vida pode nos trazer.
Com a ajuda de meus pais, professores e de todos os colegas de escola, escolhi a alavanca! Ainda me lembro como jogávamos bola depois da aula. De início, fui eleito técnico do time da terceira série A, pois todos queriam que eu estivesse no jogo de alguma forma. Mesmo sem enxergar nada, o jogo era narrado por um jogador que ficava no banco. Cada substituição ou idealização de um novo esquema tático era respeitada e cumprida por todos. Depois descobrimos a possibilidade de brincar com uma bola ensacada em uma sacola de supermercado. Isso logo se tornou uma nova brincadeira. A bola fazia barulho e jogávamos gol a gol, onde o potencial do chute era valorizado.
Minha limitação em copiar matéria da lousa também fez surgir um novo personagem em sala de aula. Era o aluno que ditava. Quase todos se candidatavam a uma função, que além de ser valorizada pelas professoras, ainda garantia a possibilidade de conversar um pouquinho, mas sem nenhuma punição.
O aluno com deficiência, inserido em uma sala de aula, infelizmente acaba sempre herdando algum rótulo, que vai do super aluno, até o de coitado, incapaz de realizar as tarefas solicitadas.
Sempre estive na primeira condição, e ao longo dos anos isso passou a me incomodar. Vinha junto o medo de ser rejeitado pelos colegas, ou mesmo de ser obrigado a sempre ir bem. A solução que alguns diriam inconsciente para mim, foi clara e pragmática. Eu tinha de não ser tão bom! Essa solução acabou sendo extremamente divertida. Ruim para meus pais, que começaram a ser chamados pelas professoras que diziam que eu era responsável pela organização da bagunça em sala de aula, porém saudável na construção de um aprendizado natural. Pontos negativos, advertências e uma recuperação, que veio como uma catástrofe, se misturavam com boas notas e com a participação em cada vez mais espaços dentro de todas as atividades escolares.
Foram muitas conquistas. Minha esposa, que conheci no cursinho pré-vestibular há 13 anos, no início apenas uma colega de sala, que em meio a muita leitura de romances e contos passou a fazer parte da minha história. O amigo e padrinho de casamento Márcio, ex-companheiro de banda de heavy metal, e atual sócio em uma consultoria, fruto de uma amizade de quase 20 anos, além de muitos professores e escolas por onde passei, fazem parte de um conjunto de tesouros impossíveis de contabilizar.
Hoje sou professor universitário, na área de Administração. A inclusão em sala de aula, desta forma, acaba sendo de novo para mim, um aprendizado constante.
Neste contexto, posso afirmar, com certeza, que o convívio com o diferente precisa ser estimulado e praticado em todos os níveis de formação educacional.
Nossa sociedade carece de advogados, arquitetos, médicos, policiais, dentre outros profissionais, que a compreendam como um meio de diversidade.
Por fim, esse relato não pode ser entendido como uma bandeira. Não devemos transformar o debate em torno da educação inclusiva em uma batalha de dois lados, os que defendem e os que são contra.
Tenho certeza da importância das escolas e institutos especiais. Precisamos nos unir e construir um país que, verdadeiramente, seja de todos.
A construção desse novo país depende de um trabalho conjunto, onde toda a sociedade utilize suas limitações como alavancas de seus potenciais. Milhares de livros são vendidos dizendo você pode, você é um vencedor, o sucesso depende de você.
Proponho que escrevamos livros sobre nossos limites, precisamos enxergá-los e encará-los frente-a-frente. Só assim, poderemos transformá-los nas grandes alavancas que resgatarão a auto-estima e a real capacidade inerente a todos de ir além.
* Carlos Ferrari é vice-presidente da AVAPE, instituição focada na inclusão da pessoa com deficiência, administrador de empresas, mestre em Administração de Empresas pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e pós-graduado em Marketing pela Fundação Cásper Líbero. Deficiente visual de nascença, ficou totalmente cego aos sete anos de idade. Atualmente, é professor universitário nos institutos Ítalo-Brasileiro e Faculdade Interação Americana e Membro Titular do Conselho Nacional de Assistência Social CNAS. Sócio-proprietário da Supera Treinamento e Gestão Sócio-Ambiental. Idealizador do treinamento Superação de Limites e Identificação de Potencialidades.
Sobre a AVAPE Com 26 anos de atuação, a AVAPE (Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais) é uma instituição filantrópica beneficente de assistência social, que tem como missão promover as competências de pessoas com deficiência. Fundada em 1982, a entidade é considerada modelo de gestão e foi a primeira em sua área a receber a certificação ISO 9001. A AVAPE é reconhecida pelo trabalho de prevenção, diagnóstico, reabilitação clínica e profissional, qualificação e colocação profissional, programas comunitários e capacitação em gestão para organizações sociais. Oferece atendimento a pessoas com todos os tipos de deficiência, do recém nascido ao idoso. Desde o seu início, já realizou mais de 18 milhões de atendimentos gratuitos e inseriu 10 mil pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Na busca de parâmetros internacionais, mantém parcerias e termos de cooperação técnica com diversas organizações do mundo.
www.avape.org.br
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