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A cegueira, o braille e o jornalismo: Furos de uma reportagem

por Lerparaver

Por Joana Belarmino

Quando penso naquele período de quase uma década em que trabalhei como repórter no então jornal de maior circulação da Paraíba, sinto como se houvesse ultrapassado uma convenção, uma fronteira; como se houvesse escalado um monte muito alto, para perceber o mundo à minha volta por sobre a estreita cúpula de pedra.

Só hoje tenho consciência do que fiz, em todos aqueles anos em que dactilografava os acontecimentos cotidianos da minha cidade, do meu país; por baixo do texto objectivo, de parágrafos curtos, insinuava-se uma outra escrita: um outro texto que dizia que cegueira e jornalismo não são incompatíveis; uma outra gramática de relações em que dialogavam o Braille, a dactilografia e a linguagem jornalística na construção dos furos de reportagem que então fui capaz de produzir.

Estávamos na década de oitenta e as redacções eram ainda imensas salas atulhadas de mesas, caixotes de lixo, fumaça de cigarro e ruído intermitente das máquinas de dactilografia, ruminando sílabas e palavras para os acontecimentos do mundo lá fora. Páginas do dia seguinte, a desfolharem-se sob os olhos ora ávidos, ora quase desatentos dos leitores de então. Páginas e páginas manchadas de tinta que se quer falavam da reportagem inédita que se desdobrava no íntimo da minha consciência, inédita reportagem da qual nunca falara até o momento em que me pus a escrever este artigo.

Por dias a fio, enquanto perseguia o alimento primordial do jornalismo, enfatizando o excesso, a falha, o diferente, o desvio, enquanto me aprimorava na técnica de seleccionar o fato mais chamativo para a linha de frente de cada matéria redigida, não me dava conta do tamanho do desafio a que me propusera, não me dava conta de que eu era o próprio desvio, num mundo em que cegueira e visualidade eram eminentemente excludentes, um mundo em que o exercício do jornalismo era sobretudo um testemunho do olhar.

Muita coisa aconteceu naqueles meus anos de jornalismo, escrita invisível de um texto inédito que se reproduzia por baixo da notícia cotidiana, reportagem nunca publicada mas propositura de uma assinatura nova para o diálogo que então se estabelecia entre cegueira, jornalismo e os modos dos quais eu dispunha para transcrever o mundo à minha volta.

Houve pois reportágens e entrevistas inesquecíveis. Situações inusitadas que ficariam muito bem em um livro de aventuras ou numa obra auto-biográfica. De todos esses acontecimentos porém, sobressai-se um, aparentemente insignificante, forjado numa límpida e tranquila manhã de sábado.

Um acontecimento aparentemente insignificante /// volto a frisar //, mas que por si só exibiu toda a problemática da cegueira, com suas especificidades e sua profunda estranheza perante os olhos do mundo.

Sábado. Para o contexto de uma redacção de jornal da década de oitenta, essa não seria unicamente uma marca no calendário. O sábado transpirava uma espécie de alegria solta, alívio antecipado, vontade de abandono das notícias rotineiras, da crónica das queixas de reclamações de faltas e carecimentos, desejo de transitar por entre as árvores, a fiscalizar a devastação dos homens ou perseguir uma cena romântica de lavadeiras a cantar em algum rio em que uma escritura da poluição pudesse ser denunciada nas páginas do domingo.

Os repórteres da geral já tinham ido pois às suas caçadas. A redacção pulsava quase tranquilidade, quando a pesada porta de vidro deu passagem a um homem idoso, a preocupação estampada na voz com que se dirigiu ao chefe de reportagem.

Queria fazer uma denúncia sobre problemas de terra e como eu estava no plantão, ele foi encaminhado à minha mesa. Começou seu relato sem se quer olhar para mim. Eu anotava freneticamente na minha reglete, compondo em Braille, uma síntese da sua zanga.

Na fala, que eu guiava para o aprontamento da notícia, com indagações, confirmações e pausas, aquele homem entregava-me suas esperanças, seu desabafo, a vontade de ver publicada mais do que uma história de desentendimento por terras, o desejo de que o recorte midiático dessa etapa da sua vida confirmasse no mundo escrito do texto jornalístico, a marca da sua honra.

Quando o relato acabou, preparei-me para dactilografar o texto. Foi quando o homem olhou para a folha de papel em Braille que eu estendera sobre a mesa, ao lado da máquina de dactilografia.

Com uma perplexidade nova na voz, ele agora me entrevistava: -- O que é isso? O que você está fazendo?

Eu poderia ter me investido da autoridade de repórter. Poderia lhe dizer que se fosse embora e comprasse o jornal no dia seguinte. Na pergunta daquele homem, porém, mais do que perplexidade e espanto havia o receio de haver perdido tudo o que me dera. O medo pânico de ver sua contenda ir-se pelo ralo, assim como a sua honra.

Foi por isso que não transigi. Foi por isso que me igualei ao homem e lhe dei as explicações que me pedia.

" Isto são minhas anotações para redigir a sua denúncia" disse-lhe com calma, evitando pronunciar a palavra Braille.

O homem fixou o relevo pontilhado no papel em branco, ávido por descobrir ali alguma letra sua conhecida e num último esforço objetou? "Mas não tem nada escrito nesse papel".

Chegara pois o momento crucial. Era a hora do confronto entre um mundo cristalizado que pensava a cegueira como incapacidade absoluta e a realidade que numa redação de jornal, uma repórter cobria o desafio diário de enfrentar esse mesmo mundo sob a moldura da sua cegueira.

"Eu sou cega. Isto é o modo como eu escrevo. Isto é o Braille". A máquina solitária do editor de cultura dactilografou um ponto final. Ele havia acabado de fechar a página de domingo. A sala ficou por longos instantes sob a cúpula de um silêncio pesado.

À minha frente, vibrava o coração de um homem que temia pelo futuro da sua denúncia, transformada em pontos incompreensíveis.

E foi somente quando comecei a dactilografar o relato, com a mão esquerda a consultar de vez em quando as anotações em Braille, para regressar ao teclado da máquina junto com a direita; foi somente depois que uma vista cansada começou a desvendar por sobre a folha manchada de tinta as palavras de sua denúncia, agora organizadas em texto jornalístico; foi somente naquele momento que ele decidiu abandonar a minha mesa de trabalho, dirigindo um olhar ainda aflito ao chefe de reportagem, onde se podia ler um apelo para que a sua nota pudesse mesmo ser publicada.

Outros episódios parecidos com aquele ainda vivem como lembranças corriqueiras no fundo dos dias da minha infância. Todos os anos, ao fim do semestre lectivo, íamos para as férias em casa dos meus pais, que viviam no alto sertão de Pernambuco. Uma singularidade que envolvia minha família (pelo menos seis dos meus treze irmãos haviam nascido cegos como eu), atraía uma verdadeira romaria de camponeses à nossa casa nos dias de descanso.

Naqueles dias, os rostos incrédulos dos camponeses perfuravam as folhas do Braille que meus pais pediam que lêssemos para eles, à procura de um entendimento que fosse para aquele estranho ritual de mãos caminhando sobre a superfície lisa do papel, ao modo das máquinas de cultivar a terra, desvendando sulcos e sulcos de uma escrita incomum.

Quantas vezes os camponeses incrédulos não pediam que um de nós saísse, para que pudesse ditar para um outro uma frase que depois o ausente teria que decifrar!!!

Que estranha escrita é essa que percute uma música composta por sons secos e ritmados, nas mesas de escola, nas reuniões de trabalho, desafiando o silêncio e fazendo com que olhares perplexos e inquisidores ergam-se até o local de onde ela vem, a pedir uma explicação, a reproduzir os antigos gestos e expressões que a visualidade sempre dedicou à cegueira, a inquirir o cego que escreve, com voz ora aflita, ora resoluta, "O que é isso? O que é que você está fazendo"?

Quantas vezes o próprio Luís Braille, inventor desse código fantástico não teria ouvido a mesma pergunta, sob entonações as mais diversas! E que resposta apropriada ele não teria dado se dissesse: "Estão ouvindo? Estou batendo na porta do mundo da cultura. Estou pedindo passagem para me instalar como habitante competente no mundo das colectividades letradas. Sou cego. Minha escrita é estranha conformação de linhas pontilhadas. Estou cavando o solo das palavras, para que vocês me vejam e se apercebam de como eu vejo o mundo"!

Porque é certo que Luís Braille, ao inventar esse pequeno filete de seis pontos justapostos, apto a gerar 63 combinações para a representação das letras do alfabeto latino inventou a chave dentada mais poderosa para abrir o mundo da cultura aos indivíduos cegos.

É certo que a partir desses seis pontos justapostos ele instaurou no mundo a palavra fundadora para o reconhecimento da máxima filosófica, metafísica, antropológica, de que a cegueira é uma forma de visão Por baixo da escrita pontilhada de livros e livros em Braille guardados nas bibliotecas; por entre as linhas das folhas e folhas de papel que trabalhadores cegos produzem nos mais variados campos profissionais; por entre os dedos do poeta cego, que sobrevoa as linhas da sua poesia escrita em Braille, persiste um texto singular, narrativa construída da história da inserção desses indivíduos num mundo que ainda não conseguiu desvencilhar-se dos seus antigos valores e que ainda fita com perplexidade o escritor/leitor da escritura pontográfica.

Notícias indiscutíveis de tal perplexidade ainda podem ser testemunhadas em pleno século XXI. No balcão da farmácia, no caixa do supermercado, vendedores apresentam ao consumidor cego, produtos em cujas embalagens alinha-se um pequeno grupo de linhas pontilhadas. A antiga pergunta insinua-se carregada de expectativa: "O que é isso"?

E novamente o gesto fundador que concedeu ao cego o seu ingresso na comunidade usuária dos signos de escrita se realiza ali, perante um perplexo vendedor que só pode explicar aquilo como um milagre, como um ritual de "adivinhação" que conforme imaginavam os antigos, ele julga estar sendo encenado pelo leitor cego, aos seus olhos, um ente quase divino.

E quando as tecnologias de informática com seus softs de voz, aliadas a cifras desalentadoras quanto ao uso do Braille por crianças, adolescentes e jovens cegos desenham no campo do debate tiflológico, a pergunta sobre se o Braille será ou não substituído pelos computadores, a nossa resposta só pode ser firmada em relevo, em grandes letras pontilhadas, a desenharem um NÃO. Letras em relevo que precisam afirmar o Braille como o único meio directo e natural para o aprendizado da leitura e escrita dos indivíduos cegos, que quanto mais ágeis e competentes forem no uso nesse código mais poderão beneficiar-se plenamente dessa poderosa ferramenta complementar que são as tecnologias.