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O braille e a musicografia - origens, evolução e actualidade

por Lerparaver

Por José Fernandes da Silva

(Trabalho apresentado no Seminário: "Acessibilidades - o que temos e o que queremos", Que teve lugar no dia 20 de Outubro de 2003 no Auditório do Orfeão da Covilhã)

Introdução

Ao ser-me dirigido o honroso convite para dissertar um pouco sobre esta temática, interroguei-me acerca da forma como haveria de elaborar o trabalho. Desde logo, tive em mente que a Música, ao longo dos tempos, tem sido o ganha-pão de muita gente e também de inúmeros cegos, que a utilizaram e utilizam, cultivando-a, amando-a, estudando-a e trabalhando-a como bons profissionais e dela retirando os justos dividendos, quer leccionando, quer como executantes, quer mesmo como compositores.

Não foram apenas os cegos que precisaram de uma musicografia específica, porque desde os primórdios do tempo o homem se viu confrontado com a necessidade de criar regras de escrita, para que, com efeito, a Música fosse uma linguagem universal e interpretada de igual modo em qualquer lugar do Mundo.

Por isso, depois de ter reflectido maduramente, decidi dar corpo a este texto, focando três aspectos, que julgo de cabal importância e elucidativos:

a) A música e a notação musical através dos tempos;

b) O Sistema Braille e a Musicografia - nascimento, evolução e actualidade;

c) A informática e o aperfeiçoamento de softwares de música manejáveis pelos cegos.

Esta pequena exposição é baseada na minha experiência profissional; na História da Música; numa bem elaborada dissertação de mestrado em Ciências da Educação, apresentada à Universidade Internacional de Lisboa, intitulada "Musicografia Braille - Instrumento de Inclusão", pela Drª Dolores Tomé, professora da cadeira de Musicografia Braille na Universidade de Brasília; a consulta de documentos actualizados e disponibilizados pela ONCE, assim como a primeira Edição do "Novo Manual Internacional de Musicografia Braille", vindo a lume em 1998 e publicado por esta Instituição; algum traquejo com softwares específicos e a leitura de bibliografia adequada.

a) A música e a notação musical através dos tempos

O que é a Música?

Diferentes definições e dos mais variados quadrantes tentam dar-lhe resposta:

"É a arte de exprimir sentimentos ou impressões por meio de sons. É a linguagem universal. É a poesia da alma. É a arte dos sons."

Falemos, então, um pouco sobre a escrita da música e da sua evolução.

É muito longo e pouco documentado o historial da escrita musical. Como na escrita de textos, usou-se todo o tipo de simbologia.

Por exemplo, os antigos hindus da época dos Vedas (3.500 a.C.) empregavam a escrita musical por algarismos ou letras do alfabeto sânscrito. Os chineses teriam sido os iniciadores da notação musical por meio de letras e os primeiros a filiar a escala na relação da quinta perfeita (2637 anos a.C.). No Império Romano, na escrita musical utilizavam as primeiras 15 letras do seu alfabeto.

A notação musical tinha a função de auxiliar a memória de quem cantava. Por isso, o cantor era obrigado a conhecer, antecipadamente, as músicas que interpretava. Principalmente, eram colocadas pequenas marcas junto das palavras, indicando o tipo de movimento sonoro a cantar. Estas marcas chamavam-se neumas, ou sinais, cuja decifração era extremamente difícil.

Os documentos mais antigos que se conservam, contendo neumas, datam do século VIII. Apesar de toda a sua dificuldade e imperfeição os neumas tinham sobre a escrita musical por algarismos ou letras a vantagem de seguir com a disposição dos sinais a altura dos sons. Trata-se do início da notação moderna.

Para a emancipação da música, na época medieval, a influência do cristianismo foi decisiva. O hino da festa de S. João Baptista foi composto de maneira que cada verso começasse num grau mais alto do que o precedente. Ao substituir a letra que indicava o som pela primeira sílaba de cada verso, passou a atribuir-se aos sons o nome que hoje têm. Por exemplo, a nota si, foi obtida juntando as duas primeiras letras de Sancte Ioannes.

Esta invenção, assim como o uso de um conjunto de quatro linhas a partir do qual surgiu o sistema de notação, diz-se que se deve a Guido d'Arezzo, que viveu nos finais do século X até metade do XI, grande teórico da Idade Média. Este sistema de linhas funcionava da seguinte forma: em cima era traçada uma linha amarela, representando a nota dó e em baixo uma outra a vermelho, que representava a nota fá. Estas eram separadas por uma linha sem cor, representando a nota lá. O som era inscrito nestas linhas por um pequeno quadrado, que indicava a sua altura precisa.

Passaram, mais tarde, a traçar-se cinco linhas, tendo uma delas uma referência que consistia numa letra ou clave, como nós actualmente lhe chamamos.

A partir do século XI o uso da pauta tornou-se habitual.

b) O sistema braille e a musicografia - nascimento, evolução e actualidade

O que é o Sistema Braille e a respectiva Musicografia? Quais as origens, desenvolvimento e estado actual?

Teríamos aqui matéria para proceder a uma ampla dissertação. Vou, porém, abordar o assunto com alguma sintetização.

Desde que o homem existe sobre o nosso Planeta sentiu necessidade de se comunicar através de diversificados meios. Um deles foi a escrita. As muitas formas de escrever foram evoluindo positivamente, à medida que a Humanidade vencia os obstáculos e se aperfeiçoava em todas as vertentes. Também assim sucedeu com a escrita. E a leitura surge como consequência imediata, atendendo a que é necessário interpretar os escritos.

Até quase ao fim da Idade Moderna desconhece-se que alguém haja pensado na escrita e leitura para os cegos.

Chega-nos a primeira informação em 1784, quando Valentin Haüy, um homem culto e de coração nobre, funda em Paris uma escola para instruir os cegos e prepará-los para a vida. Defensor de que tudo depende dos sentidos, adapta o alfabeto vulgar, traçado em relevo, para que as letras fossem perceptíveis pelos dedos dos destinatários.

Pela mesma altura, um capitão de artilharia, Charles Barbier de la Serre, debruça-se sobre um código através de pontos, que podia ser tacteado e era usado para tornar secretas as mensagens militares e diplomáticas.

Nascido a 4 de Janeiro de 1809, oriundo de uma humilde família, Louis Braille teve o seu berço na aldeia de Coupvray, perto de Paris. O pai era correeiro e um dia, apenas com três anos, o filho, quando brincava com uma sovela, feriu-se num dos olhos, propagando-se a infecção ao outro, vindo a perder a visão totalmente.

Em 1819 ingressa na instituição de Valentin Haüy e conhece o código de Barbier. De imediato, inteligente e cheio de força de vontade, começa a sua investigação, a fim de ultrapassar as inúmeras dificuldades que o impediam de pôr-se em pé de igualdade com os demais cidadãos, tendo também em mente ofertar aos congéneres da mesma sorte um Sistema capaz de abrir-lhes as janelas para o inesgotável mundo da cultura.

Pensa-se que Louis Braille inventa o Sistema (que mais tarde tomou o seu Nome) em 1825. Contudo, apenas quatro anos depois, dá a lume a primeira edição do trabalho, intitulado "PROCESSO PARA ESCREVER AS PALAVRAS, A MÚSICA E O CANTOCHÃO, POR MEIO DE PONTOS, PARA USO DOS CEGOS E DISPOSTOS PARA ELES". Deu-lhe a forma definitiva em 1837, quando saiu a segunda edição.

O alfabeto Braille é constituído por seis pontos, em duas filas verticais de três, num total de 63 sinais.

Este processo de leitura e escrita através de pontos em relevo é usado, actualmente, em todo o mundo. Trata-se de um modelo de lógica, de simplicidade e de polivalência, que se adapta a todas as necessidades dos utilizadores, quer nas línguas e em toda a espécie de grafias, quer na matemática, física, música, etc.

O alfabeto tem-se mantido praticamente invariável até hoje, mas tudo está sujeito a mudanças e a melhoramentos e, por essa razão, há quem pesquise a utilização de oito pontos.

Como a escrita das palavras, também a Música evoluiu ao longo das gerações. Os cegos, desde muito cedo, têm-na utilizado como ganha-pão e lazer. Mas como decifrar os caracteres da música a tinta?

Não escapou esta delicada situação à perspicácia de Louis Braille, que também cultivou e interpretou a música. Apercebendo-se de que urgia criar uma notação musical para os cegos, persistente e ousado, lançou mãos à obra.

Assim, em 1829, baseado no seu sistema, realizou a primeira Musicografia, integrada na obra já citada e publicada nesse ano. Sugeria, junto ao alfabeto, um sistema de caracteres musicais, baseado nos seis pontos.

Ao longo da sua curta vida, Braille foi alterando completamente o código musicográfico, desenvolvendo a notação básica do código em uso presentemente.

Com os 63 símbolos é possível obter a representação de toda a notação musical a tinta. São as letras que funcionam como símbolos musicais, precedidas de prefixos específicos.

Assim, podemos indicar as claves, os compassos, os andamentos, a dinâmica, as oitavas, os intervalos, os baixos cifrados, as notas, os silêncios, os acidentes, as alterações, a harmonização, a forma de escrita para diferentes instrumentos e vozes, etc., etc....

Por toda a parte foram surgindo diversos códigos musicográficos para uso dos cegos, tendo em conta, essencialmente, a escrita a tinta, que dificultava a sua leitura, impossibilitando também poderem ser escritos pelos usuários.

Em 1834, ainda antes do Sistema Braille ser aceite, oficialmente, pela França, o autor optimizou a notação básica do código musical.

Rapidamente este código alcançou grande êxito em França, mas no estrangeiro apenas foi conhecido em 1871, data em que o Dr. Armitage, de Londres, publica a obra "Uma chave para o Alfabeto e a Notação Musical Braille".

Oito anos depois, na Alemanha, surge outro guia e, em 1885, um novo, em Paris. Os três compêndios eram divergentes, tendo-se constituído uma comissão internacional, incorporada pela Inglaterra, Dinamarca, França e Alemanha, com a finalidade da unificação dos conteúdos. Em 1888, esta comissão, reunida em Colónia, acordou nas decisões tomadas, sendo os resultados desse Congresso divulgados nos países respectivos, ficando a ser conhecidos como a "Chave de Colónia".

Foi-se divulgando por toda a parte a Musicografia Braille, pois, cada vez mais, os cegos se valorizavam e empenhavam na melhoria dos meios postos ao seu serviço. Por assim dizer, em cada país e mesmo dentro dele, os usuários foram inventando e usando símbolos consoante as necessidades. Urgia pôr cobro a esta anarquia. George L. Raverat, secretário estrangeiro da American Braille Press, de Paris, tomou a seu cargo esta delicada missão, efectuando várias viagens entre a Europa e os Estados Unidos, até conseguir a realização de um congresso, que teve lugar em Paris a 22 de Abril de 1929, o "Congresso Internacional de Especialistas em Notação Musical Braille", com o patrocínio da União Braille Norte-Americana. Aí se adoptaram acordos importantes, que conduziram ao consenso da unificação da escrita musical dos cegos a nível mundial.

Com a participação de representantes de 29 países, sob a égide da Unesco, Conselho Mundial Braille e Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos, reuniu-se em Paris, de 22 a 29 de Julho de 1954, o "Congresso Internacional sobre a Notação Musicográfica Braille", a fim de concretizar os esforços desenvolvidos em diversos países, no sentido de aproximar cada vez mais a Musicografia Braille à escrita musical a tinta.

O Subcomité para a Notação Musical no Sistema Braille, dependente do Comité de Cultura da União Mundial dos Cegos, foi criado no início da década de 80 e reuniu pela primeira vez em Moscovo, em 1982. Desde essa data que o Subcomité se tem empenhado para que não haja desvios aos acordos estabelecidos e pugna para que prevaleça o consenso em todo o mundo.

Até chegar-se à publicação do derradeiro manual, saído, originalmente, em 1996, intitulado "Novo Manual Internacional de Musicografia Braille", editado há cinco anos pela ONCE e de que se espera, algum dia, seja contemplada a sua publicação em Portugal (onde nunca nada foi editado sobre a matéria e a que se tem dado pouca ou nenhuma importância), houve mais um longo e espinhoso itinerário a percorrer.

Esta obra, de largo alcance para uso dos cegos de todo o mundo, é o resultado de vários anos de estudo por parte do Subcomité sobre Musicografia Braille da União Mundial de Cegos e é a continuação do conjunto de manuais publicados após as conferências de Colónia (1888) e Paris (1929 e 1954), contendo ainda as resoluções e decisões tomadas pelo referido Subcomité nas conferências e acordos celebrados entre 1982 e 1994.

c) A informática e o aperfeiçoamento de softwares de música manejáveis pelos cegos

No campo da informática há muito trabalho investido, com progressos já bem visíveis e prosseguem diversas e afanosas investigações, visando a concretização dos meios para que os cegos possam digitalizar, escrever, tratar, imprimir, converter, exportar e importar ficheiros, compor, orquestrar, fazer alterações, isto é: ter a possibilidade de manejar e rentabilizar os softwares musicais disponíveis e usufruir das ferramentas que facilitam a vida aos músicos normovisuais.

Tem-se apostado bastante em facultar aos cegos a escrita da música em Braille e imprimi-la para tinta e vice-versa.

Sucintamente, referirei alguns softwares e as suas principais tarefas:

1. GoodFeel - Transcritor de partituras a tinta para Braille. Funciona associado a programas de reconhecimento óptico de música.

2. Cakewalk e CakeTalking - Sequenciador Midi, tornado acessível aos cegos através de scripts para o leitor de ecrã Jaws.

Este ano foi substituído pelo Sonar, para o qual foram adaptados os scripts.

3. Braille Music Editor - Software que permite a escrita de música, utilizando o código Braille, permitindo depois a sua impressão, quer em Braille, quer em tinta.

4. Sybelius e SybSpeaking - Software de notação musical, que se tornou acessível aos cegos por meio de scripts também para o Jaws. Este software permite a impressão a negro, directamente, ou em Braille, usando o GoodFeel ou o Braille Music Editor.

Uma das curiosidades de alguns destes softwares é a transformação do teclado do computador em teclado de máquina Braille, usando as letras f, d, s (pontos 1, 2, 3) e j, k, l (pontos 4, 5, 6, respectivamente). O espaço assume a sua função normal.

Desta forma, uma das regras essenciais para manejar os softwares é o conhecimento e domínio da Musicografia Braille.

Conclusão

Pelo exposto se conclui que o Sistema Braille é uma escrita maravilhosa e repleta de recursos.

Todos os cegos o deveriam dominar correctamente e tê-lo presente nos momentos de trabalho e de lazer.

A informática é um instrumento de inegável utilidade para os cegos e também é urgente que eles a dominem em todas as suas ricas vertentes. Todavia, de modo algum, deve substituir o bom hábito de utilizar o Braille.

Só quem o conhece e o exercita pode, também, usufruir das benesses da respectiva Musicografia.

Formulo votos para que esta, finalmente, como sucedeu com o Sistema Braille, seja uniforme em todo o mundo, de maneira que os músicos cegos possam afinar pelo mesmo diapasão!

José Fernandes da Silva

Setembro de 2003