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Orientação/Mobilidade dos indivíduos cegos - Um mito? Uma capacidade?

por Lerparaver

Por Teresa Maia

INTRODUÇÃO

Decidimos abordar este tema e, mais uma vez reflectir sobre ele numa perspectiva de quem todos os dias leva a bom termo uma parte significativa da sua vida graças à mobilidade, tendo em conta o conteúdo que esta palavra apresenta para os deficientes visuais, mais rigorosamente para os cegos.

Desde já pedimos desculpa aos técnicos pelas eventuais ausências de rigor terminológico, pois a abordagem que nos propomos fazer é na perspectiva do utilizador da "Orientação/Mobilidade" e não na do profissional desta disciplina.

São muitos os cegos que em Portugal se deslocam quotidianamente de modo autónomo por ruas e espaços interiores, com desenvoltura, segurança e rapidez. Levam na mão direita esse precioso instrumento de ajuda que é a bengala.

A bengala que os cegos usam não é, como muita gente pensa, um mero indicador de que o sujeito que a usa é cego; tão pouco, tem poderes electrónicos ou electromagnéticos. Muito simplesmente a bengala não é mais do que um tubo metálico que se divide e se articula em quatro ou cinco tubos mais pequenos, os quais se ajustam entre si por meio de um elástico que se estende ao longo do seu interior. É graças a esta divisão da bengala em tubos que ela facilmente se arruma, o que a torna discreta nas ocasiões em que não precisa ser usada. O grande segredo, o quase mistério com que a bengala é encarada não está nela nem no material de que é feita, mas sim na capacidade dos cegos a usarem de modo correcto, o que permite tirar do seu uso o máximo proveito. Assim, a capacidade dos cegos andarem pelas ruas, apanharem transportes, entrarem ou saírem dos locais pretendidos, conhecerem e identificarem espaços, pelas suas características particulares é uma aptidão adquirida, treinada e desenvolvida por intermédio de uma boa acção educativa ou de um bom e cabal processo de reabilitação. Não há, pois, qualquer mistério na mobilidade que os cegos apresentam; não há, também, nenhuma potencialidade "anómala" para "caminhar sem ver". O que sucede é que, mercê de uma necessidade específica os cegos desenvolveram, e desenvolvem permanentemente, a capacidade de se deslocarem sozinhos com o auxílio da bengala.

Como é óbvio, nem todos os cegos manifestam o mesmo grau de destreza ou de desenvoltura para utilizarem a sua bengala. Do mesmo modo nem todos são igualmente autónomos e determinados no seu manuseio. Muitos e de diversa natureza são os factores que para tal contribuem. A idade em que a aprendizagem é feita ou em que a cegueira é adquirida, o tipo de personalidade do indivíduo em questão, a sua aceitação ou não da cegueira, o encorajamento ou o medo que familiares e amigos incutem, são componentes a ter em conta neste caso. Recordemos que bengala e sistema braille são, por assim dizer, símbolos ou sinónimos de cegueira. Portanto, não aceitar a realidade e a inevitabilidade desta última é impeditivo de aceitação das duas primeiras. Esta circunstância alerta-nos para a enorme importância dos factores psicológico e social que a deficiência visual acarreta a todos quantos dela são portadores. Não é difícil reconhecer o impacto que tem, perante o público, o uso de uma bengala. Um cego jamais passa anónimo e despercebido no meio de uma multidão; é forçado a "exibir" publicamente a sua deficiência. Isto exige do indivíduo cego uma determinação e um "arcaboiço" bastante grandes e constantes.

De igual modo também as características de ordem física são determinantes. O sentido de orientação, a capacidade de memorização e de síntese, a destreza corporal, a elasticidade do corpo, a lateralidade, são factores que variam de indivíduo para indivíduo e que contribuem para uma orientação mais ou menos conseguida.

Não podemos deixar de mencionar a importância fundamental que o sentido do ouvido tem na orientação/mobilidade dos cegos. Sem este sentido uma boa ou pelo menos uma razoável mobilidade é impossível pois é graças à audição que um cego caminha, identifica o local em que se encontra (automóveis, ruídos característicos de certos estabelecimentos comerciais, largura das ruas, sentido e frequência do trânsito e dos peões, som de cursos de água, etc.). O segundo sentido mais importante para a orientação/mobilidade é o do tacto. Este não existe apenas nas mãos ou nas pontas dos dedos, embora estes sejam os pontos no nosso corpo onde ele se encontra mais desenvolvido e actuante. O tacto existe distribuído por todo o corpo (quinestezia). É graças a ele que os cegos identificam rugosidades do piso, a sua inclinação, a existência de degraus, a largura das portas, etc...

Parece-nos estar claro no espírito dos leitores, que a orientação e mobilidade para os cegos não se refere a uma simples aprendizagem mais ou menos espontânea de gestos ou tarefas surgidos de ocasião. Bem ao contrário, a orientação/mobilidade para os cegos tem carácter de disciplina aprendida e ministrada com o rigor e a sistematização de qualquer outra. Só mediante este tipo de aprendizagem é possível ao indivíduo cego desenvolver cabalmente as suas aptidões numa matéria que é de tanta importância para a sua afirmação como pessoa independente e autónoma. O complemento de uma boa orientação/mobilidade são a prática da ginástica ou de qualquer outro desporto que ajude a adquirir uma boa lateralidade, uma boa marcha, um bom equilíbrio corporal.

Falta referir que uma grande limitação da bengala é não detectar os obstáculos que afectam a parte superior do corpo: escaparates salientes, a meio das paredes, persianas ou grades colocadas em janelas de rés-do-chão, etc...

A disciplina de orientação/mobilidade encontra-se plenamente desenvolvida e é praticada em Portugal por um grupo relativo de técnicos que, dentro das condições que lhes são possíveis, a ministram aos cegos portugueses. O que a orientação/mobilidade não é capaz de resolver nem tão pouco a destreza dos cegos, é a constante e crescente anarquia e agressividade dos espaços públicos. Infelizmente os cegos portugueses são cada vez mais vítimas de acidentes provocados pela negligência e desrespeito de entidades cujo dever era acautelar e prevenir os riscos de todos os cidadãos, principalmente os mais fragilizados, aqueles cujos meios de defesa são menores. Refiro-me aos buracos abertos e não protegidos na via pública, aos carros e camiões estacionados na via pública sobre os passeios, aos montes de pedras, terras, lamas e poças de água de que os nossos passeios estão cada vez mais repletos. Não basta o ideário das autoridades que nos reconhece o direito de nos deslocarmos com segurança na via pública. É imprescindível que a realidade materialize este direito. A humilhação de cair num buraco fundo em resultado de que se ficou descomposto e enxovalhado física e moralmente, não é menor pelo facto de ser reconhecido aos cegos o "direito à diferença".

CONCLUSÃO

Delineámos, ainda que de modo breve, os aspectos que nos parecem fundamentais sobre a disciplina de orientação/mobilidade. Queremos que em nós não morra a convicção de que a autonomia dos cegos portugueses e, sobretudo, a sua segurança irão melhorar, à medida que os anos passam e de que, os obstáculos a que acima fizemos referência não passam de uma fase transitória da nossa sociedade.

Ver cegos a deslocarem-se sozinhos, com o auxílio da sua bengala tem, forçosamente, de ser um lugar comum, um acto banal e não um acto arrojado, um risco, um sinónimo de teimosia ou de coragem.

Coimbra, Outubro 1995