Imagine que está a acompanhar um jogo de futebol através do relato.
Imagine que essa experiência não acontece no contexto do futebol, mas num espetáculo de dança contemporânea. Não há texto. Não existem personagens. Não há uma história ou narrativa linear a ser contada.
Ainda assim, imagine que acompanha o espetáculo através de um relato que está a ser feito ao vivo, no teatro, em transcrição direta, enquanto este está a acontecer.
Quais as palavras justas para dizer os gestos delicados e inclassificáveis de corpos em movimento simbólico pelo palco? Esse foi um dos dilemas que Josélia Neves carregou para a experiência inédita que teve lugar no passado sábado, no Teatro São Luiz. Com voz nervosa, pelo sentido da responsabilidade, Josélia fez a audiodescrição de um espetáculo de dança contemporânea. Para este acontecimento inédito, o pretexto era adequado: a nova criação da Companhia Integrada Multidisciplinar (CIM), que junta bailarinos com e sem deficiência, da VoArte, com direção do realizador Pedro Sena Nunes e da coreógrafa Ana Rita Barata. Ou seja, em cena e na plateia um mesmo princípio:
criar um mundo provisório partilhado, onde a diferença é valorizada e onde a arte serve de língua comum para aceder à imaginação, por via do estímulo dos sentidos, com ou sem recurso à visão.
O Depois título da nova peça esteve em cena três dias, mas apenas a 18 de dezembro as portas do São Luiz se abriram nesta forma de tornar acessível a um público cego um espetáculo de dança. Apesar de ser um acontecimento extraordinário, ele insere-se numa vertente de trabalho daquele teatro municipal que, em 2007, se tornou pioneiro no país ao passar a apresentar o serviço de interpretação em Língua Gestual Portuguesa de todas as peças de teatro que tem produzido.
Josélia tem vasta experiência nesta área, da comunicação inclusiva, mas nunca tinha feito o relato em simultâneo e ao vivo de um espetáculo de dança.
Para o público em geral, as portas abriram-se pouco antes das 21h. Mas, para os espectadores invisuais, a experiência começou mais cedo. Por volta das 20h, juntavam-se pequenos grupos de pessoas, alguns acompanhados de cães. Sendo a primeira vez que tal se experimenta, Josélia não tinha um antecedente que lhe servisse de modelo e desenhou este encontro com a certeza de que, diferentemente do que acontece com a língua gestual, não bastava a mera tradução oral ao vivo.
Assim, orientados pela sua voz, ao princípio trémula, pessoas e cães percorreram a sala, sentiram a amplitude do espaço, viram com a imaginação os pormenores de decoração do teto que Josélia ia descrevendo... Depois de uma primeira introdução ao espetáculo, subiram para o palco. O cenário estava montado, os intérpretes estavam dispostos em cena, com os pés descalços sobre os grandes sacos de ráfia, que constituem o adereço cénico mais relevante, sendo a questão da reciclagem um dos temas centrais.
Nesse tempo anterior ao início do espetáculo, intérpretes deixaram-se tocar e responderam a perguntas, que começavam repetidamente do mesmo modo: Quem és tu? E ouviam-se nomes como Vigilante, Voz, Consciência... Nomes que não existiam na versão da coreógrafa Ana Rita Barata, porque não havia personagens. Mas Josélia, depois de três dias a fazer de sombra e a interrogar os artistas envolvidos, acabou por atribuir a cada um dos intérpretes um nome que os qualifica. Livres para se movimentarem por entre os bailarinos, os invisuais seguiram a sugestão de Josélia: Explorem o chão, os corpos, as formas e as texturas...
A comunicação pelo toque foi natural. Dois ou três cegos, acompanhados de um amigo ou de um familiar que os orientava, ou de um cão, ou simplesmente guiados pelos seus sentidos mais apurados de ouvido e de tato, aproximavam-se de um bailarino com as mãos estendidas. As mãos tocavam rostos, cabelos, braços, pés, percorriam o chão em volta, tateavam materiais, procuravam desvendar contornos de corpos... E faziam perguntas.
Durante o espetáculo, os auriculares para escutar a audiodescrição de Josélia acabaram por ser requisitados por pessoas normovisuais, misturando-se na plateia quem estava a ver simplesmente e quem via conduzido por uma voz melodiosa que lhe narrava os movimentos ao ouvido, numa distribuição que não ficou circunscrita ao público-alvo de cegos previsto inicialmente. E aqui surge uma questão irresolúvel da dança, que Josélia tocou por via da sua dedicação a criar formas de comunicação inclusiva da cultura. A dança, esta dança feita de corpos em movimento no espaço e no tempo, não é apreensível pela palavra. Essa impossibilidade tem suscitado um grande interesse ao longo dos
séculos. E deste interesse surgiram teses de notação que ficaram para a história, como a de Rudolf Laban, na tentativa de dar uma forma de texto à dança, do mesmo modo que o teatro possui o texto dramático que permite o seu registo, uma existência para além do espetáculo, a sua transmissão e a possibilidade da sua recriação. Num gesto de generosidade, de querer encontrar uma forma de partilhar este mundo, Josélia desafiou esta questão irresolúvel. Talvez por isso, na conversa final, houvesse quem confessasse ter querido entrar na dança por via das palavras de Josélia. E houvesse também, na curiosidade de mergulhar nesse mistério como é possível relatar uma dança? , quem tivesse fechado os olhos para, não vendo, aceder a uma outra visão do movimento. E o que sem ver de olhos fechados ou cego se desenhou na mente, fruto da imaginação orientada pelas palavras de Josélia, era já uma versão subjetiva ou uma interpretação do espetáculo.
Nesta surpreendente experiência histórica, sem encontrarmos respostas para as muitas questões colocadas, em alguns momentos do espetáculo, a dança que vimos escutava-se assim: Mais uma vez arrasta um corpo. Aquele que antes batia palmas. Batia palmas com as palmas dos pés. Trá-lo. Arrasta-o. Arrasta-o por uma perna. Subjuga-o. Senta-se ao lado. Mas...? Não tinha braços há pouco...
-
Partilhe no Facebook
no Twitter
- 1152 leituras