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Um outro olhar

por Lerparaver

João Prazeres, 46 anos, fez da cegueira motivo de superação

A cegueira de João Prazeres, 46 anos, não é nenhum segredo guardado a sete chaves. Ao contrário, é usada como exemplo de superação. Mas o que desperta curiosidade é saber que, fora as horas destinadas ao sono, durante todo o resto do dia ele mantém sob a face os óculos de grau. De fato, as lentes não lhe proporcionam nenhuma visão. Mas, com senso de humor aguçado, João explica: é para ficar mais charmoso. Não só os óculos como o relógio de pulso são acessórios sem os quais ele não consegue sair. O primeiro é mero instrumento decorativo, mas o relógio não. Com leitor em braile, dá a João a percepção exata da passagem do tempo. Entretanto, se o alvo é o sexo feminino, enquanto as colegas de trabalho dizem que mulher bonita ele enxerga de longe, entre risos, ele revela um trunfo – nas coisas do coração a intuição nunca falha. Foi assim que conquistou a mãe de seu filho, hoje com 18 anos, e se prepara para novas conquistas.

Talvez tenha sido movido por esta mesma intuição que, aos 12 anos, quando ensaiou abandonar o Instituto dos Cegos, percebeu a besteira, deu meia volta e retornou. Aquele primeiro contato com um universo de 70 cegos internos o chocou. Desde que nasceu convivia com o problema da baixa visão provocado por um glaucoma congênito, ainda assim, àquela época ainda conseguia reconhecer as pessoas, via as cores, percebia se o céu estava azulzinho ou formado para chover e assistia à TV, ainda que tivesse que ficar colado junto ao aparelho. “Para mim foi um choque ver um monte de cegos se batendo um no outro. Comecei a chorar e fui embora. Mas logo passei a tomar consciência de que aquela era a realidade que teria que encarar”, conta.

Passado o susto inicial, passou a ver a realidade sob novas lentes. Via os cegos andando, estudando, tocando piano, cantando no coral e percebeu que, mesmo sem visão, a vida poderia ter um colorido diferente. Afinal, dois anos depois, o pouco da visão que lhe restava se esvaía. Àquela altura, já havia começado a se alfabetizar em braile e, uma das maiores emoções da sua vida, seria o dia que teve a primeira aula de orientação e mobilidade. “Foi um dos dias mais felizes da minha vida, era tudo o que queria. Acho que o sonho de todo cego é andar sozinho. Antes, dependia dos outros para ir a qualquer lugar”, conta João Prazeres, que hoje, diariamente, sai de casa sozinho, no bairro de Nazaré, para o trabalho.

Novo desafio

Desde o início do ano, ele assume posto de comando na Secretaria Estadual da Educação. É na sala 404 que está à frente de uma equipe de oito pessoas da Coordenação de Educação Especial. “Talvez por temer que eu pudesse ter algum trauma, minha família evitava falar sobre o assunto. Se alguém perguntava, nunca respondiam falando, só através de gestos, como uma forma de me poupar”, recorda ele, cuja família tentou ocultar o problema da baixa visão temendo que ele não tivesse condições emocionais e psicológicas de absorver aquela realidade.

João, que já viveu na pele o preconceito por ser deficiente, que se sentiu excluído por barreiras arquitetônicas, agora quer transformar essa realidade através de políticas públicas de inclusão para a educação.

Uma das piores recordações que guarda do colegial pretende não permitir que ainda seja vivenciada hoje pelos deficientes. “Era muito triste durante as aulas de geometria e geografia quando sabia que meus colegas estavam visualizando as figuras e os mapas e eu não tinha acesso ao meu material específico”, diz João. Os obstáculos foram muitos: estigmas, preconceito, estruturas arquitetônicas inadequadas, entre outros. Mas eles foram pequenos para impedir a vontade de João de correr atrás dos seus sonhos. De aluno, virou professor do Instituto dos Cegos. Depois, foi morar em Nazaré das Farinhas, no recôncavo baiano, e lá foi eleito vereador, mesmo diante da propaganda negativa dos concorrentes: “Se quem vê não está trabalhando, imagine um cego”, diziam.

Mas o cego foi eleito vereador, vice-presidente da assembléia constituinte municipal e vice-presidente da Câmara. Com o fim do mandato, abraçou um novo desafio: a conquista do diploma do nível superior. Logo nos primeiros semestres do curso de pedagogia constatou que até o espaço acadêmico estava impregnado de preconceito. “A gente pressupõe que preconceito é coisa de ignorante, mas não. A sociedade alimenta um estigma de que o cego também é surdo, por isso tinha professores que, em vez de se dirigir diretamente a mim, perguntavam aos meus colegas o meu nome e a forma como seria avaliado”, conta João, que é especialista em educação especial.

Eram muitos os caminhos que ele poderia ter seguido. Podia ter continuado na zona rural de São Felipe, de onde saiu aos 12 anos para viver no internato do Instituto dos Cegos, e viver sob os cuidados da família diante do imaginário social da fragilidade de um deficiente visual. Mas se ainda menino o incomodava quando a professora o orientava a deixar a sala sempre antes ou depois dos colegas para poupar-lhe da confusão provocada por dezenas de garotos juntos, imagine viver até a maturidade assim, sendo poupado e tendo negado o direito de demonstrar e testar suas potencialidades? Em vez de coitado, ele preferiu o rótulo de vencedor, por isso, superou obstáculos e conta orgulhoso a história de um verdadeiro exemplo de superação.

Humor

Podia se lamentar horrores e fazer da sua história um drama. Mas se é para atribuir um gênero, o estilo adotado por João está mais próximo de um humorístico de TV. À procura de um novo amor, ele faz piada e diz que vai a um terreiro de candomblé tomar um banho de folha porque a situação está complicada. Não se considera vaidoso, mas também se nega a pagar o mico de sair de casa com combinações esdrúxulas. Para evitar contratempos, meias, compra todas pretas.

Já as roupas, prefere as cores que combinam entre si. “Desse jeito nunca vou correr o risco de sair com meias de cores diferentes e as roupas sempre estão combinando”, diz João, que se gaba ainda de cozinhar, e realizar pequenos consertos em casa. Se tem uma coisa que sente falta da visão é não poder mais olhar o azulzinho do mar e o vaivém das ondas. Mas nada que deprima esse senhor de auto-estima elevada. No fundo ele próprio sabe que, no combate às adversidades, é um vencedor. Porém, não quer ostentar a medalha sozinho, faz questão de compartilhá-la: “A família é fundamental na vida do deficiente. A inclusão deve começar em casa. Se a família não acredita em você, quem vai acreditar?”, diz.

Fonte: http://www.correiodabahia.com.br/reporter/noticia.asp?codigo=137480