Prezados,
Recentemente fui procurado para fazer uma matéria a respeito de uma escola que denegou a matrícula a uma criança cega de 5 anos, sob a alegação de que os professores da escola não estavam preparados para ensinar pessoas com deficiência visual, uma vez que eles não sabiam Braille para exercer o papel docente. Este, de acordo com a escola que se dizia estar no mercado há 17 anos, deveria ser feito por escola especializada em cegos.
Pois é, em 2012 e ainda vemos tal expressão de discriminação, preconceito e ignorância a respeito das pessoas com deficiência e o potencial que têm.
Por outro lado, isso deixa claro que as universidades que formam tais professores o estão fazendo pelas ramas.
Bem, na primeira metade da década passada fiz uma comunicação em um evento ocorrido em outra universidade, aqui em Recife, PE, o qual serve como resposta aos diretores dessa escola mal formada e seus professores preconceituosos.
Hoje partilho com vocês o texto que embora antigho, se prova ser atual nas ideias, portanto necessário ser lido por aqueles que não querem fazer como fizeram os diretores da escola mencionada.
Notem porém, que a terminologia sobre pessoa com deficiência não deve mais ser a aplicada no texto, mas a que aqui usamos: estudante com deficiência, pessoa com deficiência visual etc. Também, prefiram "grupos em desvantagem" ao uso de "minorias".
Espero que o texto lhes possa servir ao estudo.
Se quiserem comentar este ou outro texto aqui postado, fiquem à vontade.
Cordialmente,
Francisco Lima
PS. Antes de passar ao texto propriamente dito, partilho alguns links que podem interessar a vocês leitores:
O TATO E SUAS IMPLICAÇÕES NO ENSINO DE DESENHOS A CRIANÇAS CEGAS
http://www.lerparaver.com/node/9669
As pessoas cegas também Precisam de Desenhos
http://www.lerparaver.com/node/9668
A superioridade da Visão
http://www.lerparaver.com/node/9665
Foto-descrição, uma acessibilidade desejada
http://www.lerparaver.com/node/9664
Braille, Uma Escrita Emancipadora
http://www.lerparaver.com/node/9663
OBS. O texto abaixo foi inicialmente produzido para e apresentado na forma de comunicação.
ASPECTOS GRÁFICOS DA ESCRITA BRAILLE:
A INCLUSÃO ATRAVÉS DA PRODUÇÃO DE TEXTOS
Francisco J. LIMA (UFPE/CE) limafj.br@gmail.com; limafj@associadosdainclusao.com.br
Rosângela A. F. LIMA (UFPE/CAC) - raflim@ig.com.br
Therezinha M. J. M. MOURA (Escola Especial Instituto de Cegos) therezinhamoura@bol.com.br
Lívia C. GUEDES (MA-UFPE) liviacguedes@ig.com.br
A presente comunicação versa sobre aspectos da escrita Braille que, se não conhecidos, podem dificultar a inclusão do aluno portador de deficiência visual (que usa o sistema Braille de escrita para a produção de textos), na escola regular. Pelos aspectos tratados reconhece-se a capacidade do portador de deficiência visual em aprender a ler e escrever, em escolas comuns, junto de seus colegas normais. Cada vez mais vê-se ser cumprida a lei que impede a discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência, a qual pune com prisão aquele que dificultar ou impedir a matrícula dessas pessoas na escola comum/regular. Como conseqüência, mais pessoas se conscientizam da necessidade moral e ética de se propiciar ensino de qualidade, também aos alunos com baixa visão ou cegos. Todavia, muitos professores têm resistido a essa inclusão, por não se sentirem capazes de ensinar a esses alunos, já que não aprenderam o Braille, quando de sua graduação. Verifica-se que esse medo é descabido e que em apenas algumas horas, o professor será capaz de ensinar o aluno com limitação visual; que este é tão capaz de produzir seus textos quanto os demais alunos de sua série; que o professor será capaz de os ler e corrigir etc, bastando que se atente para alguns aspectos gráficos específicos da escrita Braille e que se dispe do preconceito contra a pessoa portadora de deficiência.
Sócio-culturalmente construídas, a discriminação, a segregação enfim, a exclusão de membros da sociedade humana vêm historicamente se apresentando manifestas, não só nas ações de pessoas que assumem sua intencionalidade, mas também nas falas não ditas de profissionais que se pretendem defensores da diversidade, da diferença, da multiplicidade e de outros conceitos correlatos que, se de fato fossem assumidos e postos em prática nas ações diárias desses profissionais (entre eles, os professores), viriam-se somar à tentativa de se minimizar a exclusão de certas minorias, reconhecidamente excluídas das relações sociais humanas mais básicas, por conta de sua religião, sua cultura, seu gênero, sua origem racial ou econômica etc.
Quando, pois, um professor diz que não dá para fazer um bom trabalho em uma sala de aula de uma escola de periferia, onde estão estudando crianças pobres, negras, sem dentes, revoltadas com a vida e violentas por natureza, esse professor está facultando que esses predicativos se tornem realidade como em uma profecia de alta realização.
Se é fato que as condições de trabalho em muitas escolas, se não na maioria das escolas públicas, são precárias, isso não deve servir como uma névoa que tapa uma realidade mais repugnante, a do preconceito e discriminação para com as minorias, de onde vêm as crianças de que tratamos.
Semelhantemente, quando o professor alega não poder ensinar a uma criança cega ou com baixa visão porque, ele professor, não sabe o Braille, esse professor está produzindo no outro (na criança) uma incapacidade para o aprender que não é pertinente à sua deficiência sensorial. Assim, como as demais crianças, a criança cega tem habilidades que podem ser desenvolvidas de outras que já estão manifestas, percebidas no dia-a-dia dessas crianças.
Entretanto, quando se trata do desempenho escolar, professores, pais, psicólogos entre outros, tendem a desconsiderar o potencial da criança cega ou com baixa visão para o aprender, principalmente quando se trata das habilidades lógico-matemática e verbal-lingüística.
Isso porque aqueles profissionais em geral se prendem apenas ao comportamento expresso por aquelas crianças. Comportamento esse que pode incluir manifestações corporais e lingüísticas, inclusive indesejosas, como por exemplo, o excessivo menear de cabeça, o pressionar com o dedo, os olhos, o balançar do corpo, o riso sem motivo, o verbalismo e a apresentação de uso léxico fora de ou sem conceito apropriado.
Os professores, ao se prenderem a observar esses comportamentos, tornam-se preconceituosos, uma vez que associam esses comportamentos a uma incapacidade cognitiva que tanto a literatura como a prática de educadores vêm demonstrando ser incorreta. De fato, Hatwell (1985), confirma que crianças cegas entram na escola com até três anos de defasagem, embora com a mesma idade que seus colegas. Entretanto, a autora também afirma que essas crianças recuperam esse tempo e superam muitas vezes seus colegas já no primeiro ano escolar.
Portanto, não há de se falar na incapacidade do aluno cego ou com baixa visão, em habilidades verbal-lingüística, logo, também não se deve falar, assumir ou acreditar na incapacidade desses alunos em ler ou produzir textos.
Resta, pois, dizer que não se deve assumir, defender ou acreditar na incapacidade do professor em ensinar a uma criança cega a produzir seus textos (fazer redações escolares e outras), porque essa criança escreve numa fonte gráfica diferente das demais crianças.
Sob essa ótica, o Braille é uma fonte gráfica em alto relevo capaz de ser capturada (lida) hapticamente, enquanto a escrita comum não o é. Certamente, é claro, o Braille constitui algo mais que uma fonte gráfica, uma vez, que constitui um código de escrita cujo sistema é formado por 63 combinações, a partir dos seis pontos em relevo capazes de ser produzidos por meio de reglete e punção, máquina de datilografia Braille, linha Braille ou impressora Braille.
Entretanto, e, por conta da especificidade desse código, o professor deverá atentar-se para alguns aspectos da grafia em código Braille quanto à produção de textos por seus alunos. Antes disso, portanto, é necessário que esse professor aprenda o Braille.
Mas como fazer? A quem recorrer para aprender esse código de escrita? Quanto tempo isso exigirá do professor?
Sabemos que há muita verdade no fato de que os professores nem de longe são bem pagos em todo o território brasileiro, pouco tempo ou condição financeira têm para sequer prepararem suas aulas. Menos ainda, têm para aprofundar seus estudos, buscar conhecimentos novos, fazer curso de reciclagem etc.
Da mesma forma, não têm condições suficientes para a aquisição de livros e outros materiais que lhes permitam ampliar ou adquirir conhecimentos. Todavia, nenhum desses argumentos pode racionalmente ser usado para pôr os professores na posição de incapazes de ensinar o aluno cego porque não sabem o Braille.
Menos ainda, as condições e argumentos mencionados podem servir para sustentar a resistência consciente (por vezes, preconceituosa e discriminatória) ou inconsciente desses professores para ensinar alunos com baixa visão ou cegos.
O Braille é um código formado de seis pontos dispostos em duas colunas verticais, paralelas e próximas, com três pontos cada uma. Esses pontos, em relevo, são nomeados, de cima para baixo e da esquerda para a direita, quando se está lendo, de pontos 1, 2 e 3 para a primeira coluna e 4, 5 e 6 para a segunda coluna. Esses pontos, em geral, com altura aproximada de dois milímetros (2mm), são eqüidistantes entre si, vertical e horizontalmente, propiciando ao usuário do sistema Braille uma captura háptica adequada.
A combinação desses pontos é que produz cada uma das letras e pontuações, as quais corresponderão às letras e pontuações da escrita com tinta. Assim, a combinação 1, 2 e 3 corresponde à letra L, enquanto a combinação 2, 3 e 5 corresponde em Braille à pontuação de exclamação da escrita com tinta.
A produção do relevo pelo aluno cego pode ser feita com a máquina de datilografia Braille, ou como é mais comum no Brasil, com uma reglete (uma tábua e grade metálica com células contendo seis pontos cada uma) e um punção (caneta utilizada pelo cego para a produção desses pontos na reglete).
Aqui, reside o início das preocupações que o professor deve ter a respeito da grafia de seus alunos que fazem uso do Braille.
Para a escrita com a reglete e punção, o aluno precisa despender enorme energia para a produção de seu texto. Energia esta psíquica e motora que vai muito além das requeridas da criança que vê e que esteja escrevendo em tinta. Com efeito, Coelho (2002), relata que para produzir uma página de texto Braille, em papel de formato A4, digitando num teclado do computador, atua-se cerca de 750 vezes. O mesmo texto, produzido com pauta e punção, implica cerca de 2250 movimentos para fazer tantos outros pontos; uma média de três pontos por caráter Braille.
Já no que concerne à leitura, Reino (2000) chama atenção para que a identificação de um B em Braille acarreta um dispêndio de energia equivalente ao necessário para ler um caráter vulgar de diâmetro igual a uma cabeça de alfinete.
Se é notório que depois de um longo tempo de escrita manual há um decréscimo da qualidade gráfica, quando se faz uso de caneta ou lápis, isso fica ainda mais patente quando se produz um texto com reglete e punção.
Assim, é que, em muitas situações, teremos erros de grafia que de fato não constituem erros, porém pontos a mais ou a menos em dada letra.
Tomemos o seguinte exemplo, ao escrever Então, mudamos para uma casa nova, o aluno, escrevendo em Braille, redige Então, mudamos para uma capa nova. Sabemos, pela redação do aluno, que ele estava contando sobre a mudança que fizeram, ele e sua família, para uma nova casa. Portanto, ao escrever capa nova, fica óbvio que não era essa palavra que desejava enunciar, assim como está claro que não constitui erro de grafia, uma vez que a dificuldade no uso do S está relacionada com a dificuldade do uso de Z.
Ocorre que em Braille as letras S e P compõem-se dos pontos 2, 3 e 4 e 1, 2, 3 e 4, respectivamente. Logo, o aluno acrescentou o ponto 1 à letra S quando escrevia a palavra casa, grafando-a capa, isso pode ter ocorrido por, ao escrever rapidamente, o punção ter tocado com mais força na posição 1.
Semelhantemente, um aluno que redigir A oebra tem listras quando deveria ter escrito A zebra tem listras, não cometeu um erro gráfico propriamente dito, porém pulou ou omitiu um ponto em sua escrita, uma vez que, em Braille, grafa-se Z com os pontos 1, 3, 5 e 6, sendo que o O é grafado com os pontos 1, 3 e 5.
Tais exemplos servem, pois, como alerta aos professores para que não entendam tais erros gráficos como sendo uma dificuldade de entendimento ou de aquisição da grafia padrão por parte do aluno cego ou com baixa visão, que faz uso do Braille.
Vale salientar que, semelhantemente aos erros descritos, outros podem ocorrer. No entanto, o professor não terá dificuldade para identificar quando os erros forem realmente de grafia, uma vez que nem pontos a mais nem pontos a menos dificultarão distinguir as letras S do Z, C do Ç ou À do A, os quais serão respectivamente grafados em Braille:
S (pontos 2, 3 e 4) - Z (pontos 1, 3, 5 e 6);
C (pontos 1 e 4) - Ç (pontos 1, 2, 3, 4 e 6);
À (pontos 1, 2, 4 e 6) - A (ponto 1).
Para o professor, o aprendizado do código Braille e suas nuanças requer, pois, nada mais do que vontade, ética para a educação e bom senso, já que bastará ter junto de si uma cópia do código Braille para que veja as correspondências entre as letras e outros sinais gráficos do sistema Braille com a escrita à tinta.
No mais, o tempo a ser despendido para a formação do professor na aquisição do Braille não vai além de umas poucas horas de prática e, quanto muito, de alguns centavos para a cópia do código que pode ser conseguido de revistas da área educacional ou pela Internet, por exemplo, através do site www.ibcnet.org.br.
Não atentar para esses aspectos da educação de crianças cegas ou com baixa visão, recusar-lhes ou dificultar-lhes o acesso à escola, ou ainda, menosprezar-lhes a produção textual por eventuais erros gráficos que cometam e que seus colegas de classe não o fazem, constitui grave afronta legal, moral e ética, além de um exercício desumano de exclusão daquelas pessoas que tanto precisam da educação formal, até mesmo para resgatarem a sua auto-estima enquanto pessoas, enquanto cidadãos e como membros da humanidade. O professor, portanto, é pedra fundamental para essa inclusão, cabendo a ele os ônus e os bônus de suas ações!
Bibliografia
HATWELL, Y. Piagetian reasoning and the blind. New York, American Foundation for the Blind, 1985.
REINO, Vítor. Ensino/Aprendizagem do Braille, in: Colóquio O Braille que temos, o Braille que queremos. Comissão de Braille. Lisboa 2000.
COELHO, Vítor Bordalo. O Braille na produção. in: Colóquio O Braille que temos, o Braille que queremos. Comissão de Braille. Lisboa 2000.
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