- EQUACIONAMENTO ACTUAL DESTE BINƒMIO
1 - Nota introdutória
Ao termo-nos proposto/fazer a abordagem desta temática logo de imediato tivemos consciência de que iríamos entrar numa matéria que não encontrou ainda tratamento adequado por parte dos agentes nela actuantes. Todavia, não nos sentindo com o fôlego necessário para fazer uma incursão exaustiva com a profundidade que a matéria em apreço requer, equacionando-a com outras questões circundantes que inevitavelmente se nos colocam, e que seria provavelmente fastidioso focar aqui, trazemos a este encontro algumas notas que nos parecem importantes e que poderão dar o devido enfoque à questão, as quais reflectem acentuadamente o fruto da nossa experiência enquanto profissionais do livro para deficientes visuais, nomeadamente no campo da produção deste, seja em Braille, seja falado, sobretudo nesta última vertente.
A nossa preocupação fundamental reside essencialmente no facto de tentarmos trazer à Liça o levantamento possível desta problemática, já que algumas fontes são ainda incontornáveis, conduzindo este auditório a pistas acessíveis para um profícuo aprofundamento dos seus meandros.
2 - Aparecimento do «Livro falado»
Pelos poucos documentos que nos foi possível compulsar, com alguma aproximação no tempo vislumbramos o aparecimento do livro sonoro por volta dos fins dos anos cinquenta, com a paternidade nos Estados Unidos da América, passando para o Reino Unido e posteriormente para os Países da Europa do Norte, alargando-se progressivamente para o resto do Velho Continente.
O seu aparecimento em Portugal é já augurado em Janeiro de 1960 pelo eminente tiflólogo Albuquerque e Castro num artigo ínsito na revista "Poliedro" (1), periódico em Braille, que se intitula: "O Livro Falado Começa Entre Nós a Deixar de Ser Apenas Sonho ".
Aí se enfatiza esse facto, a ponto de deixar transparecer que este meio de leitura secundariza qualquer outro em uso pelos deficientes visuais ao tempo. Mais se diz: "As obras em muitos volumes, por vezes de formato incómodo, foram substituídas em muitos casos pelas espirais do plástico ou da celulose". Acrescenta ainda o autor do artigo sub Júdice que àquela época "nalguns países o Braille entrou mesmo em crise".
E assim, tecendo os maiores encómios em favor desta forma de comunicação, Albuquerque e Castro enumerava todo um conjunto de vantagens que ela em seu entender proporcionava. O único senão, referia, residia tão só no elevado preço que os equipamentos de reprodução sonora ostentavam. Não fora este único óbice, a postura deste insigne mestre ia no sentido de admitir a subalternidade progressiva do livro braille em favor do livro sonoro.
-Ora, numa época já para muitos de nós longínqua, face à escassez de produção bibliográfica e sede de conhecimentos, podemos compreender por que motivo as ideias propaladas por Albuquerque e Castro e seus seguidores espelhavam naturalmente a defesa e supremacia neste suporte de leitura.
Curiosamente, foi a partir de então que esta tendência de incremento do livro sonoro foi significativa, projectando no nosso meio uma produção um pouco anárquica, mesmo desequilibrada face a outros meios, nomeadamente o Braille.
Realmente, a limitação apontada por este insigne mestre quanto ao elevado preço dos equipamentos havia não só desaparecido, como também surgiram outros factores favoráveis, tais como a rapidez em que essa produção era conseguida, a gama diversificada e atractiva de novos equipamentos e a diminuta fatia de recursos a envolver.
Impunha-se, como hoje, encontrar os antídotos susceptíveis de inverter esta tendência que tem conduzido à desestimulação da leitura em suporte braille ou até ampliado.
Não cremos que hoje em dia haja quem defenda este "statu quo", opinando pela defesa desta forma de produção como única, insubstituível, miraculosa e eficaz, como solução única para afastar o deficiente visual das barreiras culturais que se lhe anteparam.
Com efeito, começou cada vez mais a sentir-se a premente necessidade de contrariar esta tendência e invertê-la até serem encontrados valores verdadeiramente aceitáveis, o que até agora tem sido inglório.
Em consequência de tal surto, era já na década de setenta evidente o número crescente de cegos "desbraillizados" que, em face da referida desestimulação, buscavam no suporte áudio a única alternativa de acesso à leitura que lhes restava, porquanto no Braille já não viam a motivação e a atracção necessárias, tal era o quase ostracismo a que estava votada esta forma de escrita por parte de muitos dos mentores da formação destes cidadãos.
Revelou-se nessa época verdadeiramente notável o aparecimento de vozes discordantes que tentaram trazer um pouco de moderação face ao caos reinante, apelando para a prudência na harmonização que urgia encontrar nestes dois procedimentos, os quais, se fossem bem utilizados, proporcionariam um elevado benefício na elevação cultural dos utentes. De entre essas vozes -, é justo ressaltar o nome de Filipe Oliva que, em meados dessa década, refere a certo passo num seu artigo publicado em "Ponto e Som" (2), ao estabelecer posição sobre o confronto entre estes dois modos de leitura: "Ambas as formas de acesso à bibliografia, longe de se excluírem mutuamente, se apresentam susceptíveis de uma utilização harmónica, de modo que uma seja o prolongamento da outra".
Cremos que esta avalizada opinião, aliás secundada por outros entendidos na matéria, constituindo ao tempo uma pedrada no charco, não deixou de significar mais um alerta sério para contrariar tal tendência de desequilíbrio então em curso, ainda não completamente sanada nos tempos que correm.
3 - Situação actual
De facto, no que respeita à panorâmica que se vive nos dias de hoje não podemos aceder a critérios muito objectivos de análise, devido à falta de informação e estatísticas seguras que corroborem inequivocamente as incursões que vamos tentar ensaiar relativamente a este nogórdio, tal é a dispersão e descoordenação de informação de que nos podemos socorrer. Todavia, o nosso traquejo como profissionais e utilizadores longilíneos de um serviço de Leitura e de Produção nestas duas valências em apreço, poderá de algum modo credenciar-nos para entrarmos cautelosamente nesta análise, tentando trazer à colação os dados possíveis da questão e contribuir assim para se encontrar a terapêutica necessária, tornando desde já claro que é imperioso alterar a situação vigente.
Para focalizar este ponto de situação optamos com maior incidência pelo recurso a duas fontes que entendemos constituírem verdadeira referência nos dados que desejamos aqui relevar. Referimo-nos aos relatórios anuais de actividades da Biblioteca Sonora da Biblioteca Pública Municipal do Porto (3) e da área de Leitura Especial da Biblioteca Nacional (4), acima de todos ( 5 ).
Numa primeira aproximação no cotejo desses dados, constata-se com alguma facilidade que tem havido de facto um aumento significativo dos acervos bibliográficos sonoros em detrimento dos produzidos em Braille. Para chegar a esta conclusão servimo-nos das informações contidas nos referidos documentos, tomando como ponto de partida o ano de 1991, espaço que cremos suficiente para sustentar os nossos pontos de vista.
Pela consulta do respectivo mapa baseado nesses documentos e que se junta, pode, com toda a segurança, fazer-se tal constatação. Consequentemente, o número de utilizadores cresceu sensivelmente em favor do livro áudio e decresceu pronunciadamente em prejuízo do livro Braille.
Os indicadores totais observados nos aludidos organismos relativos a 31 de Dezembro de 1998 são prova irrefutável dessa análise, levando-nos a valores díspares como os que abaixo se apresentam:
Quantidade de títulos gravados -- 5.400
Quantidade de obras em Braille Incorporadas -- 2.643 monografias.
Solicitações verificadas durante 1998:
Obras gravadas -- 2.423
Obras em Braille -- 1.117.
Esta observação permitir-nos-á, com alguma margem de erro, é certo, mas cremos que por excesso, e tendo em consideração a actividade produtiva e difusora de outros centros menores, inferir dos elementos colhidos vários pressupostos, nos quais, talvez um pouco incipiente mente, ousaremos penetrar. Deste modo, conclui-se:
1º -- Que nas variáveis encontradas se surpreende, como dissemos, um apreciável aumento de pedidos do livro sonoro, contrastando flagrantemente com a diminuição dos do livro braille, a ponto de aqueles representarem em 1998 mais do dobro destes.
2º -- Que, gradativamente, em cada ano, é mais sensível o aumento de títulos em suporte sonoro em confronto com o suporte Braille.
3º -- Que, retenhamos este dado, a produção sonora já ultrapassa em mais de cem por cento a produção braille.
4º -- Que o acervo bibliográfico ao dispor dos deficientes visuais não ultrapassará dez mil monografias.
Estas referências conduzem-nos à conclusão evidente de que se torna necessário alterar o actual "modus operandi". Não dispomos da varinha de condão que nos dite como proceder de imediato para contrariar esta preocupante tendência do afastamento cada vez mais acentuado destes valores, contudo, pela experiência por nós colhida ao longo dos anos e pela atenção que esta questão nos merece, julgamos legitimamente lançar o nosso grito de que é necessário repor este diferencial em valores ponderados e razoáveis.
Pode-se, em sustentação da situação vigente, invocar razões de vária natureza querendo justificar tal desencontro, como seja admitir que outros extractos sociais, para além dos deficientes visuais, se tenham socorrido da leitura em áudio, ou inclusivamente argumentar que a leitura gravada é mais cómoda e/ou menos onerosa e de consecução mais rápida. Não obstante esta fácil argumentação e utilidade prática, estas razões devem ser equacionadas com as consequências nefastas de tal procedimento.
Não entraremos, por escassez de tempo, na abordagem sistematizada e profunda desses argumentos, mas tão só tentaremos enveredar por um percurso de constatação de factos e dar o melhor para o encontro de soluções eficazes e de melhor harmonização.
Com efeito, a panorâmica actual desenha-se num cenário indefinido, confuso, verdadeiramente revelador de que esta questão ainda não terá sido encarada e despistada com rigor pelos serviços competentes. Se fôssemos questionados se a produção sonora tem actualmente um papel de alternatividade ou de complementaridade na leitura, nós responderíamos que não prima qualquer destas formas. Todavia, reconheçamo-lo, tendencialmente, a leitura em áudio vai-se assumindo como um meio alternativo para os seus destinatários, surgindo em muitos casos como "tábua de salvação" para responder a necessidades urgentes.
Por outra parte, reconhece-se que a produção Braille, além de diminuta, é cara e que a variedade da temática por ela abrangida é mais restrita relativamente à produção sonora, que surge agora cada vez mais atraente e sofisticada com a contribuição da informática.
Todavia, pelos altos valores que há que preservar, tal não obsta que esta panorâmica não tenha urgentemente que ser repensada de forma atenta por parte dos organismos intervenientes, na procura do equilíbrio desejado.
Questão delicada é constatar a "desbraillização" e a "desalfabetização" que podem apoquentar aqueles que elegem e recorrem a este modo de leitura. Este fenómeno, perscrutado nas faixas etárias mais jovens, urge ser devidamente equacionado pelas estruturas educativas e reabilitativas, no sentido de que o seu magistério seja melhorado, dirigindo a aprendizagem do Braille efectivamente a quem dela carece e o pode usar com vantagem.
Finalmente, é preciso que todas as entidades e serviços que superintendem na produção e na leitura encontrem os tais critérios de harmonização e inflictam a tendência actual de aumento desregrado do livro sonoro, devolvendo o Braille a padrões de normalidade no seu emprego.
E nesses critérios devem estar imanentes os seguintes pressupostos:
1º -- Terem tais entidades e serviços a necessária atenção para o perfil dos seus utilizadores.
2º -- Terem os mesmos em conta a variedade, diversidade e equilíbrio da temática nos suportes de leitura existentes, melhorando a sua quantidade e qualidade de apresentação, privilegiando as técnicas mais recentes.
3º -- Planearem periodicamente e de forma equilibrada a produção bibliográfica e os respectivos suportes de produção.
4º -- Melhorar as estruturas que ministram o ensino do Braille.
5º -- Procederem os centros difusores à Divulgação das suas existências num único catálogo que mencione todos os suportes em que o livro é produzido.
Acerca da matéria do segundo ponto, variedade da temática, é preciso que mesmo aí se pondere sobre o que pode ou não pode eficazmente ser produzido num suporte e/ou no outro, mesmo que isso implique, num caso ou noutro, duplicação bibliográfica. Contudo, rejeitamos liminarmente que se possa tirar bom partido de uma gravação que sirva de suporte a um livro de matemática ou de fonética, por exemplo.
Acerca do terceiro ponto, sem lhe descurar outras competências, as tarefas de planeamento e de coordenação assentam bem na Comissão de Leitura para Deficientes Visuais, recentemente criada.
Ora, uma vez corrigidas as assimetrias que se denotam através do diagnóstico aqui apresentado, estaremos em condições de tentar dissecar, cautelosamente, conceitos e limites a esta matéria.
Partamos então das premissas idealmente referidas, avançando mais um pouco. Em verdade, não se pode genericamente dizer que a leitura em suporte sonoro prevalece sobre a de suporte braille, ou sobre a leitura ampliada. Estes modos complementam-se, interpenetram-se, em função do variado universo a quem são dirigidos.
Dito isto, dêmos, na medida do possível, uma olhadela sobre cada um dos substratos que integram o universo dos potenciais utilizadores:
Surgem em primeiro lugar aqueles que dominam o sistema Braille sem grandes limitações: a esses se aplica a noção pura da complementaridade da oferta em suporte sonoro, aonde recorrem a buscar conhecimentos postergados pela fonte principal.
Vem depois um segundo grupo, integrado por aqueles que lêem o Braille com dificuldade, normalmente os cegos tardios. Para estes, já a leitura em suporte sonoro começa a impor-se como uma solução alternativa. No mesmo plano se devem colocar os que, por "hobby", gostam de ouvir ler livros, incluindo por exemplo franjas de cidadãos, tais como pessoas acamadas, as quais utilizem este meio por comodidade.
Finalmente, prosseguindo na trilha da orientação ideal atrás traçada, surgem aqueles que, por qualquer razão, não podem servir-se da visão para a leitura em tinta ou em outros suportes. Para esses, a leitura por gravação, em lugar de alternativa, é exclusiva.
Afigura-se-nos que há ainda um quarto grupo, constituído por aqueles que lêem o Braille sem quaisquer limitações (é o nosso caso), mas que se habituaram, normalmente por força das circunstâncias, a recorrer, "in extremis", à leitura gravada, para encontrar a informação desejada: Para estes, tal recurso assume foros de meio complementar.
Os pontos de vista acima expendidos aplicam-se, com as necessárias adaptações, aos portadores de ambliopia.
Portanto, seguindo a linha deste raciocínio, a solução reside, pois, na adopção das medidas atrás diagnosticadas e no concerto harmónico a observar principalmente entre estas duas vertentes, entrecruzáveis, conferindo-se-lhes deste modo maior apetência para servir toda esta diversidade de clientela.
Horizontes que se vislumbram
Finalmente, depomos um pouco da nossa atenção sobre os recentes progressos do livro sonoro face à informática, em termos de futuro, numa perspectiva de continuidade ou de simbiose com outros suportes, não obstante as melhorias assinaláveis que ultimamente têm beneficiado a gravação analógica, nomeadamente no plano da indexação. Tal como acontece com o Braille e com a leitura ampliada, é já possível transferir os conteúdos da gravação analógica para suporte informático, permitindo este facto desfrutar dos seus recursos inesgotáveis, por meio da leitura em CD-ROM. Este processo traz inúmeras vantagens, porquanto, além de outras potencialidades, reduz o espaço físico do livro assim produzido e permite a localização de fragmentos de texto com toda a facilidade, melhorando-se inclusivamente a qualidade auditiva.
E ainda, na linha de uma óptica não especulativa, apercebemo-nos que se começam a desenhar figurinos que denunciam que num futuro muito próximo será possível servir todo o tipo de utilizadores, seja de Braille, seja de áudio, seja de leitura ampliada.
No que nesta altura é possível vislumbrar, através do texto escrito ficam abrangidos não só os utilizadores preferentes do Braille como também, de forma satisfatória embora, os leitores amblíopes (com adaptação de software), e ainda, mas de modo incipiente, os de áudio.
Abeiramo-nos de tecnologias que nos oferecem assinalável melhoria de qualidade, sobretudo em voz sintética. Não muito distante, porventura, estará o recurso à introdução do texto provindo da difusão sonora, que, depois de tratado, pode desembocar numa destas vertentes: braille ou áudio, lido através dos respectivos terminais, ou então no papel, ou na tradicional cinta magnética.
Uma coisa é certa: Estas transformações passam, inevitavelmente, pela mudança dos actuais processos operativos dos serviços envolvidos, que rapidamente se têm que render à informática e maximizar os seus inesgotáveis recursos. Impõe-se, obviamente, que as novas tecnologias sejam mais acessíveis, para que se sinta reflexo positivo de tal mudança.
Nesta abordagem depusemos as nossas ideias que espelham o que pensamos sobre esta matéria. É possível que nos tenhamos abeirado um tanto ou quanto do idealismo. A utopia é, como "tertuim genus" entre o real e o irreal quase sempre é e do Tejo - Lisboa, 1988/1998.
Fundos Bibliográficos da Biblioteca Braille da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (Direcção Regional do Sul e Ilhas), Lisboa.
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