bruno t. pires
Educadores mostram ao cão como comportar-se em diversas situações para ele saber como fazer quando estiver a guiar um cego
Sandra Alves
Júnior no Porto. Docas em Quarteira. Lani em Viana do Castelo. Goofy em Coimbra. Danlas em Castelo Branco. São negros ou beijes, da raça Retriever Labrador. De Norte a Sul, muitos já os terão visto em trabalho, guiando com confiança o seu dono em ruas movimentadas, escadas rolantes ou no comboio. São cães-guia para cegos entregues pela Escola de Mortágua (Viseu), única no país. Camila foi a primeira, em 1999. Marx é o 50.º. Duas dezenas de utilizadores estão, este fim-de-semana, reunidos na Figueira na Foz, para debater problemas, trocar experiências e apresentar dados sobre o site do Clube Português de Utilizadores de Cão-guia (www.cpuc.org.pt).
"Verificamos que o cão permitiu, não só muito maior autonomia física, mas também uma integração social extraordinariamente maior", salienta João Fonseca, presidente da Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV), que gere a Escola de Mortágua. "O cego passou a ser alvo das atenções dos que o rodeiam. Daí a importância da escolha da raça Labrador, que permite a aproximação das pessoas", acrescenta.
Para assinalar a entrega do 50.º cão-guia está a ser preparada uma revista com as histórias de cada dupla. "É um marco, mas é mais simbólico, porque o 50.º é tão importante como o 49.º e como será o 72.º", refere o dirigente da ABAADV. "Significa que temos um passado que nos ajudará a ser melhores no futuro".
Família escolhe nome
E o futuro passa pelos nove cachorros da Kuska, que nos recebe cheia de energia quando entrámos na "maternidade". Seis pretos e três beijes em cima de um cobertor, no chão da sala, subdividido em três para que a mãe tenha espaço para descansar e comer. Ouvem-se os latidos dos pequenos e o som de um rádio a tocar. "É para se habituarem aos ruídos. Devem receber o máximo de estímulos possível", explica Ana Filipa, directora técnica. "Eles não estão mais de uma hora sem serem mexidos para se habituarem ao contacto humano".
Os filhotes da Kuska nasceram há cinco semanas, mas ainda não têm nome. A escolha será feita pela família que os acolher a partir dos dois meses. Certo é que irá começar pela letra O. "Cada letra corresponde a um ano de nascimento", conta João Fonseca, veterinário de profissão.
"O cão é que decide"
Aos 12 meses o cão "regressa" à escola para iniciar o treino técnico. Os dias de semana são passados nas ruas de Coimbra e Viseu a aprender a identificar uma caixa multibanco ou contornar obstáculos inesperados, como carros estacionados nos passeios. "O cão-guia é diariamente sujeito a processos de decisão e ele tem que decidir, porque está a trabalhar com uma pessoa, deficiente, que não tem a capacidade de antecipação, de verificação, de equilíbrio perante um factor novo", afirma Vítor, um dos educadores. "É o cão que decide e a pessoa confia nele".
Perante as características do cão-guia, a escola selecciona o seu utilizador. "Um cão macho, com um determinado tipo de andamento e 65 centímetros de altura, não vamos entregá-lo a uma senhora de 60 anos que caminha devagar", exemplifica o presidente da ABAADV.
Os cães-guia são entregues gratuitamente, "o cego só paga as duas semanas de formação num regime de proporcionalidade do rendimento do agregado familiar, numa base estimada em 500 euros", explicou o presidente da ABAADV. Mas os custos inerentes a cada cão rondam os 15 mil euros. A Segurança Social cobre "60 a 65% do nosso orçamento, que ronda os 200 mil euros anuais", o resto provém "dos sócios, de donativos e da venda de merchandising".
Nova legislação prevê coimas para quem barrar a dupla
O "direito de acessibilidade dos deficientes visuais acompanhados de cães-guias a locais, transportes e estabelecimentos de acesso público" está definido no decreto-lei 118/99, sendo que o texto também prevê a fase de treino dos cães-guias quando acompanhados do respectivo educador ou família de acolhimento. Mas, na prática, a lei nem sempre vinga e os utilizadores de cães-guia são barrados à entrada de restaurantes, supermercados e salas de espectáculos.
O Clube Português de Utilizadores de Cão-guia (CPUC) e a Associação Beira-Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV) fizeram algumas propostas de alteração ao regime jurídico actual. "As negociações estão na recta final", revelou João Fonseca, presidente da ABAADV. "A promessa da Secretaria de Estado é que será para entrar em vigor no primeiro trimestre de 2007, pelo que presumo que, até ao fim do ano, a nova legislação seja aprovada", acrescentou ao JN.
Uma das alterações é a introdução de coimas para os incumpridores. Os utilizadores de cão-guia propõem uma coima "graduada entre uma a cinco vezes o valor mais elevado do salário mínimo nacional" - ou seja, entre 385,90 euros e 1929,50 euros em valores de 2006. "A legislação vai incidir sobre os cães-guia para cegos e cães que auxiliam deficientes motores e surdos, definindo ainda quem poderá produzir estes cães de assistência", revelou o dirigente.
Cãoguia
Carlos e Marx, a dupla número 50
Carlos e Marx,
a dupla número 50
A partir de 24/26 meses
Após o treino técnico, o cão-guia e o seu utilizador fazem um estágio de formação - uma semana na escola e outra na zona de residência do cego. Por ano são entregues, em média, 12 cães. Há 40 candidatos já aprovados pela escola. O tempo de espera é de três anos.
Conhecem-se há apenas dois meses, mas já são inseparáveis. Carlos Santos é cego e Marx o Labrador que o ajuda a enfrentar os obstáculos do dia-a-dia. "Estamos na fase de adaptação um ao outro, mas está a correr tudo bem", revelou, ao JN, o contemplado com o cão número 50 da Escola de Cães-Guia para Cegos. O encontro entre os dois deu-se em Setembro depois de uma semana de "estágio" na escola. Desde então, Carlos trocou a bengala, "muito incómoda", pelo Labrador de 2 anos e meio. As viagens de autocarro entre casa, em São Brás de Alportel, e o trabalho, em Faro, são sempre feitas a dois. Marx também está presente nas aulas do 12.º ano de Psicologia e Francês. "Até já fomos à discoteca. Portou-se muito bem", brincou.
Carlos perdeu a visão aos 24 anos (tem 32). Era mecânico e a queda de um automóvel que reparava destruiu-lhe a face, já quase toda reconstituída. Actualmente trabalha no apoio ao cliente de um hipermercado. Marx acompanha-o sempre e até teve direito a um colchão no balcão de atendimento. "Foi muito bem recebido. Colegas e clientes gostam dele e fazem-lhe festas", conta. Para já, dá por bem empregue os 300 euros que pagou pela formação com o Marx. A maior dificuldade, diz, é "adaptar os meus horários rotativos à rotina dele. Quando trabalho só de tarde, tenho de me levantar cedo para levá-lo à rua". Mas Marx compensa-o "com o muito que me dá em troca de quase nada". Marisa Rodrigues
Acolhimento
"Separação custa, mas é um vício"
Dos 2 ao 12 meses
A Escola de Mortágua tem cerca de 20 famílias que acolhem os seus cães, mas precisava do dobro. Basta gostar de cães, viver na Região Centro e ter algum tempo para ensinar ao cão as regras básicas de viver numa casa com pessoas para também poder ser uma.
Ricardo chega com Olla, uma Labrador preta que veste um colete laranja e azul onde se lê "Famíla de Acolhimento de Cão-Guia". Catarina junta-se a nós. Souberam desta possibilidade por colegas de trabalho. "O Miki foi o primeiro cão que tivemos e quando começou a ir para o treino técnico, como a ausência dele nos criava algum transtorno, optámos por ficar com a Olla", explica Catarina, de 28 anos. Olla está em casa em permanência e Miki ao fim-de-semana. Mas o afastamento do Labrador beije "é complicado", confessa Ricardo, de 31 anos. "O Miki passou a fazer parte das nossas vidas". Mas nem tudo é fácil. "É extremamente desagradável querer entrar num sítio e ser-nos barrada a entrada, mesmo mostrando o decreto-lei 118/99 onde está contemplada a situação do cego, do educador e da família de acolhimento", como aconteceu num supermercado. O casal recorda também as traquinices do Labrador beije. "Um dia demos com ele a comer os meus óculos de sol", diz Ricardo. Questionados sobre se querem continuar a acolher cães a resposta é "Sim!". A escola dá todo o apoio. "A única coisa que pagamos é a água que o cão bebe", destaca Catarina. "Custa muito na altura da separação, mas quando se tem contacto com a realidade dos invisuais e aquilo que significa este cão para eles, esse 'egoísmo' acaba", acrescenta. "É um trabalho que requer tempo, em que podemos perder algumas coisas mas ganhamos muitas mais".
Treino técnico
"Simular o futuro" para saber decidir
Entre os 12 e 24 meses
A Escola de Mortágua tem três educadores - Vítor, Sabina e Marta - que fizeram formação específica, em França, durante três anos. Os educadores ensinam ao cão como comportar-se em certas situações do quotidiano, que poderá encontrar no futuro.
Depois do curso de Relações Públicas e Marketing e um estágio de seis meses, Vítor entrou "naquela triste fase do desemprego". E quando surgiu em Mortágua o projecto da escola de cães-guia para cegos, arriscou. "Fui para França fazer a formação e as coisas resultaram", conta ao JN, numa pausa na manhã de treino do Miró nas ruas de Coimbra. Desde 2000 já treinou 26 animais. Hoje está com a colega Marta, educadora há dois anos. O estágio de secretariado na escola proporcionou-lhe o contacto com os cães. Quando "surgiu oportunidade de enviar alguém para França a escola propôs-me tirar o curso", explica. Ao seu lado está Lolla. "Ainda deve ser entregue este ano", revela. Mas o que se ensina a um cão-guia? "Primeiro mostrar como deve comportar-se perante uma situação. Depois há a estimulação e a repetição de forma a que o cão interiorize. A terceira fase é ver se o cão consegue pôr isso em prática". E Vítor exemplifica "Uma pessoa faz um determinado trajecto para o emprego mas, um dia, está um buraco no passeio. O cão vai procurar a solução para continuar com o objectivo, que é levar o utilizador ao trabalho". "Um educador treina quatro cães por dia. Trabalhamos em Viseu e Coimbra, para diversificar ao máximo os percursos", explica Marta. 'Avança', 'busca linhas' (passadeira), 'busca máquina' (multibanco) são alguns dos "cerca de 25 comandos" transmitidos. "O cão-guia trabalha sob a ordem do seu dono", salienta Vítor.
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