Caros amigos.
Na passada quarta feira, 11 de março de 2015, a convite da Doutora Vânia Costa, tive a honra de estar presente numa aula aberta a que dei o nome de turismo Universal.
Esta aula decorreu no Ipca (instituto politécnico do Cávado e do Ave), e foi dirigida a um grupo de alunos do terceiro ano do curso de Gestão de Atividades Turísticas, da disciplina de Projetos e Incentivos em Turismo.
Partilho convosco a comunicação que escrevi de propósito para esta aula aberta.
O título que decidi dar a esta aula aberta foi turismo universal. Infelizmente, esta designação significará na melhor das hipóteses uma profecia, não fosse eu um optimista convicto e militante!
Lamentavelmente ainda estamos muito longe de termos uma oferta generalizada de turismo verdadeiramente inclusivo e universal, o que é um autêntico paradoxo tendo em conta a evolução sócio/económica que também tem beneficiado as pessoas com deficiência, que assim estão em melhores condições para procurarem disfrutar de cultura, lazer, melhorando e diversificando muito o seu ócio.
Se o turismo é reconhecidamente um dos negócios mais rentáveis que o nosso país conhece actualmente, então as pessoas com deficiência exigem ser também parte integrante dessa actividade económica, e querem mais do que nunca alimentar todo este potencial, trazendo assim um valor acrescentado para o mercado turístico.
Importa de uma vez por todas reter esta ideia. Hoje os deficientes também podem dar lucro!
Mas antes de falarmos especificamente de turismo acessível, temos primeiro de abordar, de uma forma necessariamente genérica, o modo como devemos acolher uma pessoa com deficiência.
Não é que tenhamos de ter cuidados muito elaborados, mas existem alguns erros que normalmente são cometidos, e importa por isso sensibilizar os agentes turísticos para não criarem barreiras desnecessárias à comunicação e à interacção entre eles e as pessoas com deficiência.
O primeiro cuidado que devem ter é não abordarem a pessoa de forma diferente. Um dos erros muito frequentes é alterar o tom de voz, ou o elevando, ou então comunicando quase como se estivéssemos a falar para uma criança ou para um ser humano diminuído nas suas faculdades intelectuais.
Devemos ajudar apenas o necessário. A preocupação em excesso faz com que a pessoa com deficiência se sinta um corpo estranho superprotegido, e o que se verifica é que normalmente o turista assume uma postura proactiva e solicita ele próprio a ajuda que gostava de obter.
É sempre importante frisar que um turista com deficiência apresenta os mesmos padrões de exigência e qualidade que os demais, e por isso tem a sua individualidade, vontade própria e não gosta que lhe imponham o que quer que seja, ainda para mais quando está plenamente consciente que por vezes a fronteira entre a indelicadeza e a rejeição com que se nega esse tratamento superproteccionista é muito ténue aos olhos daqueles que não estão preparados para lidar com um público com estas caraterísticas.
Naturalmente que existem mais nuances, que são específicas de cada deficiência, e por isso deve haver da parte dos responsáveis a sensibilidade para incluírem esta vertente na formação que será ministrada aos colaboradores que vão realizar atendimento ao público.
E por falar em sensibilidade, há uma ideia chave que é transversal a toda esta comunicação. A acessibilidade deve ser encarada como uma questão de marketing.
Quando nos perguntamos. Porque devemos tornar um espaço acessível? Podemos e devemos ter a ambição de rentabilizar o negócio. NO meu ponto de vista, é muito curto encarar a acessibilidade apenas como um mero ato de solidariedade.
Ela deve ser Mainstream e nunca para nichos.
Acessibilidade é um direito e não uma benesse, é algo muito concrecto e objectivo e por isso é tudo menos abstrato.
Humana e legalmente é injusto que uma pessoa seja prejudicada em função de uma deficiência.
Hoje a comunidade em geral valoriza muito os que demonstram políticas efectivas de inclusão, porque quando um empresário está sensível à deficiência é provável que tenha um espírito humanista muito mais vincado, que pode servir para muitas outras coisas, não admirando por isso que seja muito bem aceite pelo público, mesmo aqueles que não têm deficiência e por isso não beneficiam diretamente da acessibilidade que é criada.
As próprias instituições de deficientes exercem cada vez mais uma influência positiva junto do mercado, e podem funcionar quase como agentes reguladores não oficiais. Se um determinado projecto for tecnicamente validado por uma instituição, traz uma enorme mais valia para o respectivo. Se pelo contrário, houver uma denúncia que determinado projecto não cumpre as regras de acessibilidade, pode colocar seriamente em causa a viabilidade do mesmo, tal é a reputação negativa que se gera junto da comunidade.
Por isso, Quando o espaço é acessível podem e devem publicitar esse facto, porque para além de ser inteiramente justo, pode ser também um factor de motivação para que outros sigam o vosso exemplo.
Mesmo considerando a variável económico/financeira, penso que aqui o problema está mais em perceber se queremos ou não queremos tornar um espaço acessível?
As soluções não têm de ser demasiado onerosas. Estudando-se caso a caso é possível desenvolver planos que sejam viáveis e simples de por em prática.
Até porque existe outra ideia muito importante e que vos quero deixar.
Por vezes as soluções implementadas com o propósito de garantir acessibilidade, vão por inerência beneficiar mesmo os turistas que não tenham deficiências físicas.
Dou-vos um exemplo concrecto.
No Oceanário em Lisboa, qualquer visitante pode requisitar um áudio guia.
Esse equipamento contém dezenas de mensagens pré gravadas. Nas paredes do espaço existem códigos que quando inseridos no equipamento permite-nos ouvir a descrição detalhada daquilo que estamos a ver.
Eu sei que este equipamento é requisitado por muitos turistas sem deficiência, que preferem ouvir a mensagem áudio ao invés de ler a informação que está afixada.
É um caso evidente e demonstrativo de uma medida que foi pensada para pessoas cegas e com baixa visão, e que acaba por ser útil a um leque de turistas muitíssimo abrangente.
A este propósito, não posso deixar de vos falar de uma vertente que para mim me é muito cara, que é a áudio descrição.
Hoje, felizmente já temos alguns filmes no circuito comercial que trazem esta ferramenta adicional, e que podemos activar no menu do DVd. Também já se começam a promover peças de Teatro com o serviço de áudio descrição. Ainda estamos numa fase muito embrionária, mas eu penso que este é um dos desafios mais urgentes para os agentes culturais a curto médio prazo, porque efectivamente temos falado muito de acessibilidade ao meio físico, mas é imperioso que nos viremos definitivamente para a acessibilidade cultural propriamente dita.
Se mais justificações fossem necessárias para vos convencer da importância de tornar um espaço turístico acessível, bastaria deixar-vos esta ideia extremamente pertinente e que nos deve fazer reflectir.
A inexistência de acessibilidade causa uma falta de autonomia da pessoa e uma consequente dependência na realização das tarefas.
Isso traz um grande desconforto e um custo muito acrescido, pois não me passa pela cabeça que se forem confrontados com a entrada no vosso espaço de um cliente com mobilidade reduzida, vocês tenham a coragem de o por na rua, alegando incapacidade para o acolher, pondo a nu as vossas fragilidades no quesito da acessibilidade.
Tal postura, para além de ser severamente punida por lei, teria repercussões altamente nefastas e seria alvo de uma condenação pública generalizada, transformando-se, está bom de ver, num péssimo cartão de visitas!
Por conseguinte, podemos e devemos criar acessibilidade de raiz, através de uma estratégia integrada, evitando assim soluções de recurso, que normalmente acabam por ser mais dispendiosas e menos bem aceites pelos clientes.
E não nos devemos esquecer que no turismo, como em muitas outras vertentes, não é só o rendimento que conta, mas também as necessidades do individuo na sua relação com o meio. E no caso dos deficientes, eles viajam porque querem cultura e lazer, e não porque têm uma deficiência.
Aproveitando o ensejo, penso que uma das grandes mais valias que pode trazer uma oferta turística acessível, prende-se com a relação entre o indivíduo com deficiência e a sua família ou grupo de amigos.
Para esse grupo de turistas, o facto de existir um local que ofereça acessibilidade influi muito no processo de escolha, e por vezes é mesmo o principal factor de decisão.
Portanto, pode dizer-se com toda a propriedade que sob o ponto de vista económico a acessibilidade não vai beneficiar só a própria pessoa que dela necessita, mas também um conjunto de pessoas que com ela viajam.
Entrando agora em situações mais específicas, temos de ter consciência que quando falamos de acessibilidade, estamos a abranger uma enorme variedade de espaços desde:
Museus, salas de espetáculos, monumentos, jardins, recintos desportivos, unidades hoteleiras, espaços de diversão, transportes públicos entre muitos outros.
Estamos também a falar de algo muito importante e que por vezes é descorado que são os postos de turismo.
É pois fundamental que a informação seja disponibilizada em vários suportes e formatos para que todos lhe possam aceder, não fossem os postos de turismo o primeiro e principal cartão de visitas para quem não conhece uma cidade.
Não posso deixar de abordar igualmente a questão das páginas de Internet que devem ser a principal fonte de pesquisa de informação, bem como as aplicações para smartphones, que à semelhança das plataformas web, devem cumprir as regras da acessibilidade electrónica.
As pessoas com deficiência visual, utilizam quase que exclusivamente o computador e o telemóvel para acederem à sociedade da informação e do conhecimento, e por isso dependem muito da acessibilidade e da usabilidade das plataformas onde são disponibilizados os conteúdos.
À semelhança das outras nuances da acessibilidade que vos tenho falado, uma página de Internet ou uma aplicação móvel que cumpra as regras de acessibilidade e de usabilidade, vai ajudar todos os utilizadores, porque lhes vai permitir aceder à informação de forma mais célere, diminuindo os níveis de frustração que se sente quando não se consegue, ou se demora demasiado tempo a aceder a determinado conteúdo.
Ou seja, aqui também a acessibilidade deve ser universal, e não se deve cair no erro de criar serviços segregados para determinados segmentos de utilizadores, mas sim tornar uma só ferramenta acessível a todos.
Permitam-me reiterar muito bem este ponto que já vos falei atrás. A acessibilidade não tem haver apenas com a vertente da mobilidade, longe disso. É necessário que a pessoa com deficiência possa usufruir de toda a oferta que o espaço proporciona aos restantes consumidores.
As pessoas não entram nos locais apenas para irem à casa de Banho!
No caso por exemplo de uma pessoa cega ou com baixa visão, de nada adianta deslocar-se a um museu fisicamente bem concebido e acessível, se depois não tiver oportunidade de colher as informações e vivenciar as experiências que estão disponíveis para o público em geral. Neste caso, o museu deve implementar soluções técnicas que permitam à pessoa cega ouvir e ler a informação disponibilizada, quer através de áudio descrição, maquetas, informação em Braille e caracteres ampliados etc. Deve também permitir ao visitante cego tocar nos objectos que ali estão expostos.
Hoje, existem muitos profissionais de acessibilidade capazes de aconselhar os responsáveis museológicos, permitindo estudar caso a caso, e conceber as soluções técnicas mais adequadas, bem como formar os técnicos para atenderem convenientemente um turista com necessidades específicas. Permitam-me insistir nesta questão da formação dos técnicos que vão atender o público, porque ela é de extrema importância. Primeiro porque as pessoas com deficiência gostam de sentir que estão a ser atendidas por pessoas que dominam a especificidade dessa deficiência, e porque um inadequado atendimento pode transformar-se numa má experiência para o visitante, o que se pode tornar trágico, na medida em que existe um investimento na acessibilidade, e por falta de preparação dos recursos humanos, o cliente não atinge o grau de satisfação pretendido.
E para o público com deficiência é também ingrato perceber que houve essa vontade e esse investimento, e por questões de somenos importância os objectivos não são atingidos.
A formação não tem de incluir obrigatoriamente a simulação das diferentes limitações. Não é preciso que os técnicos sintam na carne as dificuldades com que se depara uma pessoa com deficiência, porque enquanto esta supostamente se encontra devidamente reabilitada e em condições de conviver em harmonia com a sua incapacidade, o mesmo não acontece com quem apenas está a fazer de conta, que obviamente ficará com uma ideia muito monstruosa da deficiência, sendo talvez o exemplo mais palpável o da cegueira, em que o primeiro empacto da falta da visão é realmente assustador, mas é preciso deixar claro que um cego reabilitado consegue obviamente superar esses traumas.
Uma outra recomendação que vos deixo, e que é muito importante, é não encerrarem mais cedo os serviços destinados ao público com deficiência. Tal facto é mal aceite, e por isso as soluções criadas no âmbito do plano de acessibilidade devem abrir e encerrar juntamente com todos os restantes serviços disponibilizados ao público em geral
Existe uma ideia fulcral e que devemos todos interiorizar.
As soluções para tornar um espaço acessível e prazeroso existem, não são muito dispendiosas, e trazem-nos uma experiência de veras gratificante e humanamente muito enriquecedora para todos.
Um caso paradigmático do que ora refiro, é o Museu da Comunidade concelhia da Batalha, que é indiscutivelmente um extraordinário exemplo de acessibilidade.
Sabemos no entanto que nem sempre é possível fazer com que toda a oferta seja acessível.
Em algumas situações em que tal não seja manifestamente possível nem viável, podem ser desenvolvidos programas complementares que permitam a vivência de experiências e sensações através da potenciação dos sentidos, sendo exemplo disso actividades na natureza que sejam muito visuais, em que se desenvolvam outras que substituam a visão, apelando à utilização do olfato, do tato e da audição, isto naturalmente na perspectiva das pessoas cegas que numa situação destas podem cheirar plantas e flores, ouvir pássaros, reconhecer texturas entre outras nuances abrangidas pela estimulação sensorial.
Para finalizar, e em jeito de conclusão, deixo-vos 8 pontos fundamentais que são defendidos pelo código de conduta da União europeia para o turismo acessível, e que sintetizam muito bem as ideias que vos deixei.
São eles:
O reconhecimento de Igualdade de Direitos;
A atenção pessoal;
A eliminação e Prevenção de Barreiras ao Acesso;
O aperfeiçoamento dos conhecimentos, aptidões e competências e na consequente formação contínua do pessoal;
Na monitorização;
Trabalhar sempre que possível com fornecedores que também reconhecem e respeitam os princípios contidos no Código de Boa Conduta da ENAT;
Celeridade no tratamento de queixas;
e finalmente na responsabilidade da gerência.
Espero que depois destas reflexões que aqui partilhamos, vocês enquanto futuros gestores e profissionais do turismo percebam que a acessibilidade não é um fardo, que não deve ser vista apenas como uma mera variável económica, e que é essencialmente uma questão de humanidade, de justiça, de inclusão, e sobre tudo muito importante, é uma questão de democracia.
Um espaço que não é acessível não é democrático porque não está em condições de acolher todos os homens e mulheres livres que desejam fruir do espaço em causa.
Filipe Azevedo, instituto politécnico do Cávado e do Ave, 11 de março de 2015.
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