Elizabet Dias de Sá
Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
Hasta la hora del ocaso amarillo
cuántas veces habré mirado
al poderoso tigre de bengala
ir y venir por el predestinado camino
detrás de los barrotes de hierro
sin sospechar que eran su cárcel.
(Jorge luis Borges)
Como é o lugar quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas sem ser vistas?
(Carlos Drumond de Andrade)
O presente trabalho destina-se, especialmente, aos leitores que podem ler e enxergar com os próprios olhos e, talvez, desconheçam ou mistifiquem a experiência não visual. Foi elaborado com a intenção de ampliar as informações sobre o tema da acessibilidade, a partir de um referencial particular, o da realidade vivenciada por pessoas cegas ou com baixa visão. Baseia-se em uma sondagem aleatória, tendo como referência um questionário com 12 perguntas, divulgado na internet, entre usuários de ledores de tela e softwares com síntese de voz, além das incursões de minha vida pessoal e profissional.
O questionário foi respondido por 83 pessoas das quais 71 são do Brasil e 12 de Portugal. Entre os brasileiros, 23 são jovens e estudantes que não utilizam computadores. As respostas obtidas foram selecionadas e organizadas em tópicos que contemplam aspectos relevantes no sentido de esboçar um traçado dos centros urbanos e exprimir a dinâmica de relações entre os cidadãos e o meio circundante. A síntese dessas respostas configura um painel das principais barreiras e entraves detectados.
As pessoas cegas e com baixa visão dependem de terceiros para identificar ruas, endereços, itinerários de ônibus, avisos, obstáculos e outras referências visuais. Transitam com dificuldade por vias públicas em geral e ficam expostas a constantes situações de risco. Utilizam a bengala como principal meio de locomoção, o que é confirmado por 48 das 83 pessoas que responderam o questionário. Por outro lado, 21 dos respondentes se valem apenas de guia humano, enquanto 12 recorrem às duas alternativas e 4 utilizam cães-guia para se locomover.
Como era de se esperar, a bengala é recurso indispensável na locomoção de pessoas cegas. Podemos considerar, no entanto, que o uso exclusivo de bengala ou mesmo de cão-guia não dispensa a colaboração de eventuais guias humanos ou informantes, ainda que seja apenas para atravessar ruas, parar o ônibus ou o táxi, prevenir acidentes ocasionais ou facilitar o acesso, entre outras possibilidades de interação. A figura do guia humano é uma variável significativa por representar, aproximadamente, 25% da amostra, o que demonstra sua relevância, embora seja menos acessível. Estamos nos referindo ao guia humano como alguém disponível para o desempenho - voluntário ou profissional - da função de acompanhar pessoas cegas, em sucessivos deslocamentos, apoiando-as na realização de tarefas e expedientes eminentemente visuais.
O cão guia é utilizado raramente, talvez, por se tratar de alternativa pouco difundida, de difícil acesso e aceitação social. Em Portugal, "restaurantes, salas de espectáculos, transportes públicos e toda a espécie de locais não podem, por lei, vedar a entrada a cegos e aos seus cães-guia. Isso apenas é possível desde o ano passado, por regulamentação expressa no decreto-lei 118/99, de 14 de Abril. Há, no entanto, pouco conhecimento acerca deste imperativo legal, e alguns estabelecimentos (...) criam dificuldades". (1)
No Brasil, o contexto não é diferente. Algumas pessoas cegas foram barradas por estarem acompanhadas de cães-guia e recorreram à justiça para assegurar o direito de transitar livremente com o animal em espaços públicos. O metrô de São Paulo só permitiu a circulação de uma mulher cega acompanhada de um cão-guia, por meio de decisão judicial, baseada na lei municipal 12.492/97, que assegura o acesso e trânsito de cães-guia em ambientes públicos. (2) Por outro lado, em um condomínio residencial de Florianópolis, uma moradora cega tentou manter seu cão-guia no apartamento e os condôminos votaram, em assembléia, pela retirada do animal, recorrendo ao regulamento do condomínio que proíbe a permanência de animais no prédio. (3)
Reações e posturas semelhantes demonstram falta de sensibilidade, negação da diferença, desconhecimento da legislação e desrespeito aos direitos fundamentais. São numerosos e desafiadores os obstáculos que dificultam ou impedem a locomoção, a livre circulação, a comunicação, a interação física e social das pessoas cegas ou com baixa visão em suas atividades diárias. Não raro, estas pessoas convivem com atitudes, atos discriminatórios e estruturas excludentes que convertem o quotidiano em campo de batalha e tornam a condição de cidadania mera abstração ou um ideal inatingível.
As barreiras percebidas, no transporte, nas ruas e vias públicas em geral, tornam o espaço urbano intransitável para qualquer pessoa e inacessível para as que têm dificuldade de locomoção ou mobilidade reduzida. Em decorrência, "estes problemas fazem da locomoção dos deficientes visuais uma verdadeira aventura pela cidade, tornando as atividades que poderiam ser muito simples, algo complexo que atrapalha de modo significativo o nosso direito de ir e vir". (4)
Das 83 pessoas que responderam o questionário, 72 são usuárias de transporte coletivo e 25 delas se mostram insatisfeitas com os serviços e as condições existentes. Relacionam inúmeras dificuldades das quais ressaltamos:
- pegar ônibus fora dos terminais;
- acesso nas estações de comboio e do metropolitano; - obter informações, o itinerário e o não anúncio das estações do metrô;
- no ponto de ônibus, sozinho principalmente quando chove;
- na entrada dos transportes e a comprar bilhetes nos autocarros;
- acesso ao transporte, degraus e assentos sempre ocupados;
- arquitetura interna dos ônibus e superlotação;
- descer do ônibus é um perigo constante;
- obter informações de motoristas e passageiros, os quais não entendem por que e para que uma pessoa cega insiste em sair sozinha;
- pessoas que trabalham com transporte coletivo pouco preparadas para lidar com portadores de deficiência, qualquer que seja a deficiência;
- falta de preparo de funcionários e da população em geral para conduzir um deficiente visual, ao atravessar a rua ou pegar o ônibus;
- transeuntes desatentos.
A disposição desordenada e caótica do mobiliário urbano ganha realce e visibilidade através das pessoas cegas que deparam com barreiras tais como:
- cabines telefônicas ou orelhões e lixeiras sem sinalização;
- veículos estacionados irregularmente em passeios públicos;
- obras sem proteção ou cordão de isolamento, cuja maleabilidade e altura não são detectadas pela bengala;
- esgoto e bueiros abertos, dejetos, buracos, sacos de lixo, entulhos, pisos quebrados;
- cartazes, placas publicitárias, mesas e cadeiras nas calçadas;
- falta de sinais sonoros nas ruas;
- toldos baixos avançados nas calçadas e outros obstáculos aéreos;
- vegetação agressiva, vasos, canteiros, jardineiras e árvores com ramos baixos sem proteção;
- camelôs, bancas de frutas, carrinhos de pipoca e de hot-dog;
- pavimentação irregular, calçadas com aclives e declives;
- portões abertos ou que se abrem automaticamente;
- barras de ferro, postes metálicos finos e de difícil localização pela bengala;
- falta de alinhamento na construção dos edifícios;
- excesso de ruído próprio dos centros urbanos;
- elemento surpresa como andaimes nas calçadas;
- falta de sinais de trânsito nas ruas e avenidas mais movimentadas;
- falta de faixas de segurança com sinaleira para travessia de pedestre;
- inexistência de calçamento, degraus nas calçadas;
- semáforos com pouca luz;
- todo tipo de barreira arquitetônica e ideológica.
O impacto destas barreiras sobre as pessoas com dificuldade de locomoção ou mobilidade reduzida reflete a organização caótica e desordenada dos centros urbanos e a relação de incompatibilidade entre os cidadãos e o meio circundante, caracterizado por ambientes restritivos, espaços inacessíveis e estruturas excludentes. Nesta perspectiva, "imagine o que é viver em um mundo em que caixas de Correio e orelhões são como obstáculos em pistas de corrida. É dessa forma que os deficientes visuais do Recife descrevem a cidade: um local planejado para quedas e acidentes". (5)
A variedade de obstáculos móveis, imóveis, ocasionais ou permanentes exprime a concepção de espaço urbano projetado para uma espécie de "homem-padrão" , cuja imagem idealizada desconsidera diferenças e peculiaridades dos pedestres reais.
A implantação e a implementação de serviços, equipamentos públicos, projetos e outras iniciativas que poderiam favorecer a locomoção e mobilidade de pessoas cegas foram assinaladas por 21 sujeitos da amostra. É o caso, por exemplo, da constatação de leis municipais, quase sempre ignoradas ou descumpridas e de ações localizadas das quais se distingüem:
- implantação de passarelas, pisos táteis ou linhas-guia em trechos
estratégicos na àrea urbana;
- elevadores com painel em braille dispersos em prédios públicos e particulares;
- projetos de adaptação de ônibus, de plataformas do metrô e de prédios públicos;
- semáforos sonoros isolados;
- funcionários treinados para atender aos deficientes visuais em estações de metrô.
Os exemplos focalizados são indicadores de ações fragmentárias que se mostram insipientes e quase imperceptíveis no complexo cenário urbano, sendo realçadas apenas em pontos dispersos de uma região ou do país. Alternativas dessa natureza tendem a ser motivadas por grupos de pressão ou derivam de projetos circunscritos em contextos específicos com níveis de prioridade, relevância e amplitude relativas e nem sempre congruentes. Representam investimentos e ações focais desarticuladas da efetivação de políticas públicas concebidas sob o primado da igualdade de oportunidades para todos e sob a égide dos direitos fundamentais.
Acessibilidade como vivência de cidadania
As atividades escolares, profissionais e de vida diária das pessoas cegas ou com baixa visão são facilitadas por meio de máquinas de escrever braille, gravadores, livros sonoros, ledores, microcomputadores com softwares adaptados para ampliação ou leitura de tela, impressoras braille, auxílios ópticos e outros equipamentos ou acessórios que se tornam indispensáveis ao desenvolvimento das potencialidades destas pessoas. O sistema braille figura como recurso preponderante ou complementar na conjugação das alternativas disponíveis. Os recursos informáticos são considerados de grande relevância, embora sejam inacessíveis para a maioria das pessoas.
A falta de material ampliado ou em relevo, de livros transcritos para o braille, sonoros ou em suporte digital, a insuficiência e precariedade de serviços especializados são enfatizadas como fatores que dificultam e comprometem a escolarização destas pessoas. Alunos com baixa visão ressaltam a inadequação do ambiente físico, especialmente, quanto as condições de iluminação. Salientam a necessidade de ampliação de material em tinta, desenhos, imagens e gráficos. Estudantes universitários e profissionais cegos demandam acesso à literatura especializada e tecnologias adaptativas em diversas áreas do conhecimento e no mundo do trabalho.
Para estas pessoas, o acesso à leitura, escrita e à informação em geral poderia ser viabilizado através de investimentos e ações tais como:
- ampliação e otimização das bibliotecas e serviços especializados existentes;
- Incentivos e subsídios financeiros que possibilitem o acesso às tecnologias disponíveis no mercado;
- provisão de equipamentos e de programas com interfaces específicos como ampliadores de tela, sintetizadores de voz, impressoras e conversores braille, dentre outras possibilidades, em escolas, bibliotecas e demais espaços educativos;
- atualização do acervo bibliográfico das universidades, produção de livros em disquetes ou cd-rom, maior circulação de livros digitalizados em formato alternativo;
- Estabelecimento de normas e regras de acessibilidade para a criação e manutenção de sites que possibilitem a navegação, utilização de serviços, acesso às informações e às interfaces gráficas na internet;
- Disponibilização, por parte das editoras, de formatos alternativos às edições em papel;
- criação de bibliotecas virtuais com acervo diversificado e acessível aos leitores com necessidades especiais;
- Conversão de jornais, revistas e livros em vários idiomas para edição sonora ou eletrônica.
Das 83 pessoas que responderam o questionário, 19 afirmam ter enfrentado dificuldades de acesso e permanência em escolas regulares. As demais perderam a visão na idade adulta ou estudaram em escolas especiais. Em Alguns casos, as famílias optaram por transferir-se de cidade ou separar-se dos filhos para garantir o acesso à escolarização especial, alternativa justificada em razão de reiteradas recusas ou da protelação de matrículas em escolas regulares, além de presumível despreparo dos educadores, destas escolas, ao lidar com alunos cegos ou com baixa visão.
Da amostra estudada, 19 pessoas admitem não ter autonomia para assinar documentos. Entre elas, algumas esclarecem que só aprenderam a escrever por meio do sistema braille e que não se ensinava a assinar em tinta. Outros têm autonomia relativa porque determinadas transações ficam atreladas à exigência de procuradores. É o caso, por exemplo, da abertura de contas correntes, aquisição ou aluguel de imóveis, abertura de crédito ou a compra de aparelhos celulares. Tal imposição é praticada de forma arbitrária e aleatória, uma vez que não se aplica às mesmas situações em todos os lugares.
Em muitos casos, torna-se necessário percorrer um labirinto burocrático para vencer as barreiras impostas, o que exige tempo, paciência e disposição. Em conseqüência, algumas pessoas reagem passivamente, ao desconhecerem seus direitos ou para evitar transtornos e desgastes emocionais. Por outro lado, a arbitrariedade também é confrontada com reações incisivas. Neste sentido, deparamos com um depoimento ilustrativo: "a única vez que tentaram me impedir de comprar algo, com meu cheque, apontei minha bengala para uma televisão exposta na loja de eletrodomésticos e perguntei se quebrando aquele televisor inteiro, aceitariam meu cheque para pagar o prejuizo! Engraçado, aceitaram!" (6)
O apego a normas restritivas - de cunho protecionista - encobre atitudes e atos discriminatórios que acabam por violar direitos e disseminar o estigma da incapacidade. Além disso, constituem atos lesivos por invadir a privacidade, provocar constrangimentos e impor tutelas desnecessárias, dificultando a vida pessoal e social destas pessoas. Nesta perspectiva, "deve-se ressaltar que a exigência de que um procurador indicado em documento público represente o deficiente visual, é impor-lhe a qualidade de incapaz e esta atitude é ilegal, pois onde a lei não restringe, não é lícito a ninguém fazê-lo". (...) A falta de visão não é empecilho para o cidadão movimentar sua conta como não foi a falta de audição para que Bhetoven pudesse deixar às gerações futuras o legado de sua música. Como irá fazê-lo? Ora, deixe que ele responda... Com o auxílio de um ledor; de um secretário; de um parente; de um guarda; de quem quer que seja, mas, eleito por ele, na hipótese de sentir a necessidade da ajuda. Ao Banco, cabe a tarefa de facilitar-lhe o acesso à tecnologia, a leitura das cláusulas contratuais, a perfeita movimentação dos cartões, aliás, como faz (e deve fazer) com o idoso e com todo aquele que precisa de tratamento especial para ver garantido os seus direitos". (7)
As pessoas cegas costumam despertar atenção, curiosidade e estranheza, ao fazer compras, combinar peças do vestuário, lidar com talheres, dinheiro ou realizar tarefas igualmente prosaicas. É como se fossem "párias" em uma comunidade de cidadãos invisíveis, cujos direitos são esquecidos, negligenciados ou negados quotidianamente. Portanto, torna-se necessário insistir na afirmação de direitos básicos que assegurem a igualdade de oportunidades para todos. Neste sentido, convém potencializar o compromisso dos agentes públicos, a promoção de ações educativas e a participação dos sujeitos envolvidos. As necessidades de cada pessoa têm igual relevância e deveriam constituir a base do planejamento social.
Elizabet Dias de Sá
24 de setembro de 2000
REFERÊNCIAS
1 Jornal de Notícias de 20/08/2000, http://www.jn.pt
2 Folha de São Paulo, 25/05/2000
3 Jornal Diário Catarinense, 14 de Maio de 2000
4 Opinião expressa em uma das respostas do questionário.
5 Diário de Pernambuco, 23/07/2000
6 depoimento relatado em uma das respostas do questionário.
7 Ação Civil Pública Com Pedido de Ordem Liminar, Cuiabá-MT, 15 de fevereiro de 2000
_____ In: Mobilidade, Comunicação e Educação: desafios à acessibilidade. org.
Antônio Fasolo Quevedo, José Raimundo de Oliveira, Maria Teresa Egler Mantoan. p. 149-158. WVA Editora, novembro de 2000 UNICAMP/SP, Brasil
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