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Testemunho sobre o braille na minha realização pessoal

por Lerparaver

Por José Fernandes da Silva

Iniciou-se com 10 anos na aprendizagem do braille no Instituto de S. Manuel. Dedicou-se aos estudos musicais, vindo depois a situar as prestações nos meios religiosos e populares. Foi telefonista/recepcionista até se tornar professor de Educação Musical.

Aos sete anos fui para a escola e vi nela a concretização dos primeiros sonhos, pois desejava aprender a ler e escrever.

Feitas as provas de passagem para a classe seguinte, com 9 anos, um fulminante de dinamite, que fiz explodir, apagou para sempre a luz nos meus olhos. Desmoronavam-se os ambicionados anseios! Tudo eram dificuldades, impossíveis, desalentos e vontade de nada mais fazer. Não me saía da ideia a separação de tanta coisa bela que dantes comtemplava! Não mais leria os bonitos trechos que ilustravam os meus queridos livros! Não mais expressaria os desejos e vontades na minha linda caligrafia! Não mais executaria os coloridos e expressivos desenhos! Tornara-me num inútil...

Em quatro longos meses de internamento hospitalar, eram estas divagações e o desânimo que me acompanhavam.

Um dia, uma simpática irmã de caridade, abordou-me e falou-me da possibilidade de reaprender a ler e escrever, através de um método especial que um senhor francês, ele também cego, tinha inventado e posto ao serviço dos seus congéneres em todo o mundo. Que sensação me invadiu a alma! E que ânsia de conhecer essa maravilha redentora me começou a devorar!

Nessa época era muito difícil ingressar numa escola especial. Só depois de um ano de muitos pedidos e influências foi possível internar-me no Instituto de S. Manuel, onde tive como mestres, competentes e dedicados, o Prof. Luís Ribeiro, Dr. Fernando Silva e, muitas vezes, a tirar dúvidas e a incentivar, esse baluarte da tiflologia portuguesa e verdadeiro amigo meu e de todos os cegos, o Prof. Albuquerque e Castro.

Iniciei a aprendizagem do braille, essa "Bíblia" inesgotável que me tem acompanhado na vida. O cenário da sala de aula era a polirritmia dos punções, das pautas, do manejo dos cubos nos cubaritmos, do deslizar dos dedos pelas folhas de zinco ou de papel e pelos livros, enquanto eu tacteava um pequeno tabuleiro de madeira, onde se dispunham seis bolas, em duas filas verticais de três.

Era um exercício excitante, reproduzir os 63 símbolos do Sistema Braille. Depois, passei para uma régua dividida em rectângulos, de seis furos cada, dispostos como no tabuleiro anterior, onde colocava pequenos pregos. Seguiram-se as folhas de zinco (com letras separadas, pequenas palavras, linhas espaçadas), mais tarde substituídas por folhas de papel, já com frases curtas, e, finalmente, dominados perfeitamente os caracteres, uns livrinhos com textos simples e cativantes, retirados do "Campo de flores" e da "Cartilha maternal". Não mais se me extinguiu no ouvido o som da azáfama da sala de aulas!

A primeira vez que juntei letras em palavras e comecei a ler, senti enorme alegria, porque a partir de então podia ler, escrever, fazer contas, decifrar desenhos e enterrar um ano de dolorosa escuridão. Rasgavam-se-me, assim, as janelas para o mundo da cultura, da educação, da comunicabilidade, para o campo profissional e do lazer.

Apesar das novas tecnologias, que admiro e uso largamente, jamais deixei um só dia de ler e escrever braille. Mesmo quando recebo textos digitalizados, gosto de os converter para relevo e tacteá-los. Sou seguidor dos princípios que me incutiram, e aconselho, - a necessidade de usar bem o Sistema Braille, quer na qualidade da escrita e para a fluidez na leitura, quer na estética do tratamento dos textos.

O Sistema Braille tem sido precioso na minha realização pessoal; mas gostaria de ressaltar alguns aspectos:

1. Plano educativo - O braille esteve sempre presente na minha educação; e a leitura e a escrita proporcionaram-me e fortaleceram o processo de aprendizagem a todos os níveis. Tive acesso a alguns manuais escolares, o que punha em pé de igualdade com os colegas normovisuais, sentindo-me frustrado sempre que não podia dispor deles. Assim, estudei línguas, contactando com a ortografia; exercitei a matemática e a física, disciplinas que exigem muita prática; estudei música, servindo-me da musicografia braille; pude discutir as matérias disciplinares; prestei provas escritas, pondo em evidência capacidades e dificuldades; sempre privilegiei a leitura e a escrita em braille.

2. Plano profissional - Convenientemente alfabetizado pelo método braille não me foi difícil a progressão nas metas a atingir: não teria sido um excelente telefonista/recepcionista e, actualmente, um professor de Educação Musical sem problemas, se não tivesse tido uma educação esmerada e persistente no manuseamento do Sistema Braille. Como telefonista/recepcionista pude criar a minha lista pessoal com os contactos mais usados na empresa; tomar apontamentos vários; registar mensagens de qualquer tipo, etc. Profissionalmente, o braille é um aliado inseparável e o gesto de escrever tudo o que elaboro dá-me mais segurança, permitindo-me maior criatividade e facilidade na organização do raciocínio.

3. Plano afectivo - Ler e escrever, em braille, ao longo da vida, tem-me proporcionado uma infinidade de satisfações: escrevo música, poemas, contos, trabalhos técnicos e académicos, crónicas para jornais e revistas; troco correspondência (excelente veículo para a permuta de ideias, bem como para contacto e conservação de amizades nascidas do companheirismo nas escolas, nos centros de reabilitação, em convívios, etc.); leio livros e textos de toda a índole, de carácter lúdico ou profissional.

4. Plano interpessoal - Neste particular, o braille tem-me facultado manter relações com diferentes tipos de pessoas, versando diversificados assuntos, como troca de ideias, partilha de experiências e opiniões sobre obras literárias e técnicas, música, jogos, informática, política, religião, etc.

Em conclusão direi que o braille me tornou a integração mais acessível: permitiu-me, globalmente, o desenvolvimento cultural, social e profissional, alargou-me o conhecimento em todas as vertentes, poupou-me ao tédio preenchendo-me com benesses os vazios do dia-a-dia.

No braille há ainda muito por explorar. Só o permanente contacto com a leitura e a escrita levará à descoberta de outras potencialidades. O braille é o amigo por excelência, o instrumento de que me socorro a todo o momento, o escape para o tédio, para a solidão, para as horas alegres e para o desânimo. É o catecismo que deve ser reconhecido de fio a pavio e dominado em todas as extensões. Sinceramente, pelos benefícios colhidos, solto um canto de júbilo, de exaltação, de agradecimento e acção de graças, em memória de Luís Braille, esse Cego notável, que legou aos parceiros da mesma condição o Sistema Braille, uma fantástica e inesgotável "Bíblia", que a todo o instante deve ser folheada!

In "Mãos que lêem - Testemunhos a Louis Braille"

(Editorial Minerva)

Comentários

Prezado Milton Vilela e demais interessads na difusão do Sistema Braille:
Posso afirmar, sem sombra de dúvida, que Louis Braille, criador do sistema formado apenas por seis pontos há 200 anos e que sofreu pouquíssimas alterações, é meu ídolo. Prova disso é que, apesar de reconhecer o valor inestimável das tecnologias da informação - softwares leitores de tela, placas de som, computadores , escâners e impressoras -, percebo que, em determinadas situações, ler braille (em papel ou em linhas braille) é a melhor solução. Este Sistema permite-me ler revistas em vários idiomas, relembrando a ortografia e o estilo de escrita de todos eles, além de proporcionar que eu dê a minha própria interpretação ao que estou lendo, sem interferência de qualquer voz sintetizada ou humana. Para ler e escrever em braille, nos requisitos básicos são a a presença de uma pessoa, de material em braille, da máquina braille e da reglete. Aliás, esses últimos dois instrumentos são portáteis e leves, perfeitos para serem utilizados em palestras e em outras situações em que se pretende que a escrita braille faça o menor ruído possível. A linha braille mais em conta que encontrei custa 3.000 (três mil) dólares. Portanto, é premente a necessidade de desenvolver um equipamento de baixo custo, o que Milton Vilela está fazendo. Estou à disposição para auxiliá-lo. Moro no Brasil, e concordo com as sugestões até agora dadas no site Lerparaver.

Cristiana M. C.

José,
Parabéns pelo texto e também pelas poesias. Li o Cofre de Ternuras e achei-o saborosíssimo.
Os leitores de telas são a maior invenção tiflológica desde o Braille. Mas ao contrário de exterminar o primeiro, aumentou-o em produção e em número de leitores. Não são, portanto, tecnologias rivais, mas irmãs. Há que se ter profundo cuidado em adotar o leitor de telas como o seu único instrumento de leituras. Tenho observado que alguns cegos, esquecidos do Braille, tornam-se analfabetos digitais. Ouvem, escrevem como ouvem e às vezes, o resultado é muito ruim. Não digo isto para tachá-los de qualquer coisa. Na verdade, lamento porque, no ambiente de trabalho, tão má ortografia pesa contra a imagem e fecha as escassas portas. Preocupar-se com a correção da escrita e do vocabulário é conferir credibilidade a tudo quanto se diz. Um palestrante cego tem duas alternativas: ou esmera-se em organizar mentalmente sua apresentação ou tem um apontamento em Braille a seu lado. Os notebooks, tão simpáticos, neste momento, serão pouco práticos. Portátil mesmo, somente o Braille.