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Os cães-guia para cegos em Portugal

por Lerparaver

Até 1996, quando nasceu a primeira escola portuguesa de cães-guia, Portugal era o único país da União Europeia que não dispunha desta ajuda técnica para os deficientes visuais.

Sabina Teixeira e Vítor Costa são os educadores de cães-guia da Escola de Mortágua e são as duas únicas pessoas que exercem esta profissão em Portugal. Estiveram em França dois anos a aprender a educar cães para serem guias de cegos e actualmente uma terceira jovem encontra-se a frequentar o mesmo curso. Sabina e Vítor fazem um grande esforço para conseguirem ter quatro cães prontos para entrega em cada ano, por isso a Escola de Cães-Guia de Mortágua não pode, por enquanto, atribuir mais do que oito animais anualmente.

Desde 1999 já foram entregues 18 cães e outros dois serão atribuídos nas próximas semanas. No entanto a lista de cegos interessados em ter um destes animais ainda inclui cerca de 70 nomes.

Um cão-guia para cegos é um animal, geralmente de raça retriever do labrador, que é educado durante dois longos anos para conduzir o seu dono em segurança nas suas deslocações. Este dedicado companheiro de quatro patas evita que o cego choque com os obstáculos, ajuda-o a encontrar a entrada dos locais onde pretende dirigir-se, procura um multibanco ou um telefone público, encontra a passadeira para peões e até impede que pise poças de água e excrementos de outros animais.

O Cão

Uma relação de cão-fiança

Um cão-guia para cegos é um animal, geralmente de raça retriever do labrador, que é educado durante dois longos anos para conduzir o dono em segurança nas suas deslocações. Os dois elementos da dupla servem-se do arnês para comunicarem um com o outro enquanto caminham confiantes pela rua.

Um cão-guia para cegos é um cão que tem por principal função conduzir uma pessoa cega em segurança através dos espaços onde ela precisa de circular. Assim, o animal guia a pessoa bem pelo meio dos passeios ou plataformas de estações ferroviárias, mantendo-a afastada da estrada ou da berma do cais. Evita todos os obstáculos com que o dono possa colidir, quer os que se encontram à altura do solo, como carros mal estacionados, postes, pessoas e até excrementos de outros animais, quer os que ameaçam a cabeça do cego, como ramos de árvores, por exemplo. Desvia-o dos buracos no pavimento, escolhe o piso menos acidentado, evita que a pessoa cega pise as poças de água. Procura-lhe um lugar vago no autocarro ou num café, leva-o até ao balcão de atendimento nos estabelecimentos comerciais, encontra-lhe a máquina multibanco ou telefone público mais próximos, localiza as passadeiras para peões e impede que o dono atravesse a rua quando estão carros a passar.

Fardado a rigor

Para realizar o seu trabalho, até o cão tem farda própria. O arnês é o acessório indispensável ao bom funcionamento e à segurança da dupla cego/cão-guia.

Basicamente compõe-se de duas partes: o colete e a pega.

O colete ajusta-se ao corpo do cão por meio de fivelas e é feito duma fibra muito resistente, semelhante à que é usada na confecção de mochilas de montanhismo.

A pega fixa-se no colete e é feita de aço inoxidável, para não enferrujar enquanto o cão acompanha o dono à chuva. Pode ser descrita como uma letra U invertida: o corpo do animal fica entre as pernas do U e o cego segura na parte que é curva.

O utilizador de cão-guia não deve exercer nenhuma influência sobre a pega do arnês. Apenas tem que segurá-la e interpretar os sinais que o cão lhe dá através do seu corpo: é assim que pode calcular, por exemplo, a altura dum degrau, mediante a inclinação do corpo do labrador quando o desce.

Mas para além de todo o trabalho que realiza, , o cão-guia é ainda uma excelente companhia, que contribui para alterar a postura cabisbaixa do cego, caminhando com a bengala pela rua. É factor de aumento de auto-estima e representa uma extraordinária melhoria na qualidade de vida da pessoa cega, ao nível da sua autonomia independência.

Raça de eleição

Não é qualquer animal que está à altura de desempenhar este papel. É preciso que tenha uma boa capacidade de aprendizagem, não só no que diz respeito à quantidade de informação que consegue interiorizar mas sobretudo no que se refere à capacidade de registo, ou seja, é necessário que não esqueça o que aprendeu.

Não pode apresentar qualquer sinal de agressividade, porque isso prejudicaria tanto a sua relação com o utilizador cego como a relação deste com as outras pessoas.

Tem que revelar bons índices de obediência e ser um cão mais submisso do que autoritário, para que o seu único critério para desobedecer ao dono seja evitar que ele ponha em perigo a sua segurança.

É preciso que tenha uma boa capacidade de adaptação a novas circunstâncias porque, nomeadamente ao nível do número de pessoas a quem se subordinará, irá conhecer uma família de acolhimento, que o socializará nos seus primeiros meses de vida, um educador, que lhe ministrará o treino específico e, finalmente, o utilizador cego. Quanto a ambientes, depois de ter sido educado e treinado num determinado lugar, este cão tem que abandonar o espaço que conhece e transferir-se para a residência do cego que, normalmente, é num local do país completamente diferente e, por vezes, bem distante.

Por todas estas razões, a raça escolhida em Portugal para ser utilizada como cão-guia foi o retriever do labrador. Este animal reúne todas as características fundamentais para exercer este trabalho com competência, isto é, sem pôr em causa a segurança do utilizador cego. Além disso esta raça apresenta uma natural tendência para servir o ser humano, tarefa que desempenha com alegria, o que o torna um companheiro fácil de gratificar, desinteressado, dedicado e digno de confiança.

A escola

Começar do zero

Até 1995 Portugal era o único país da União Europeia que não contava com uma Escola de Cães-Guia para cegos. O projecto nasceu da persistência de meia dúzia de pessoas, apoiado por um programa comunitário, e agora depende de um subsídio da Segurança social.

A ideia da primeira escola portuguesa de cães-guia para cegos começou a tomar forma em 1995. Nessa altura Portugal era o único país da União Europeia, sem contar com o Luxemburgo, que não dispunha desta ajuda técnica para os deficientes visuais.

Foi um projecto que resultou do empenho de Júlio Paiva, de Filipa Paiva e de João Pedro Fonseca. Cada um deles aderiu à iniciativa com a sua força de vontade e com aquilo que podia representar uma mais-valia. Júlio Paiva é professor de Mobilidade, ou seja, está habilitado a lidar com cegos e com a problemática da orientação e locomoção. Filipa Paiva é veterinária e João Pedro Fonseca está ligado à Escola Profissional Beira-Aguieira que, juntamente com a Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), a Direcção Regional de Educação do Centro (DREC)e a Câmara Municipal de Mortágua, foi uma das entidades fundadoras da escola de cães-guia.

Os primeiros passos

Ainda em 1995 o projecto candidata-se a um fundo social europeu, mas só será aprovado no ano seguinte. Financiado pelo programa comunitário Horizon, o sonho começa a realizar-se. Fazem-se viagens a vários países europeus, com destaque para a Inglaterra e Suécia, para observar os modelos das escolas europeias com experiência, já que em Portugal não havia ninguém que tivesse uma ideia de como deveria ser constituída uma instituição deste tipo. Constroem-se as instalações da escola portuguesa em Chão do Vento, Mortágua. Obtêm-se os primeiros cachorros, por doação de criadores e particulares. Através de contactos pessoais, encontram-se famílias de acolhimento que recebam os pequenos cães em suas casas e cumpram o papel de os socializar. Em meados de 1997 Sabina Teixeira e Vítor Costa partem para França para fazerem o curso de educadores de cães-guia para cegos.

No princípio de 1999 começam a aparecer os resultados. É formada a primeira dupla cego/cão-guia com a entrega da Camila, a primeira cadela treinada em Portugal. No mesmo ano foram ainda atribuídos outros seis cães.

Com o fim do ano de 1999 acabou também o programa Horizon. Por isso se iniciou uma nova etapa na vida da escola de cães-guia, que se desligou da Escola Beira-Aguieira e fez-se a escritura de uma associação sem fins lucrativos que se chamou Associação Beira-Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV). Em seguida verificou-se a necessidade da ABAADV ser reconhecida como Instituição Particular de Solidariedade Social para estar em condições de celebrar um contrato atípico com a Segurança Social, com o objectivo de garantir a manutenção da escola. O primeiro triunfo da recente ABAADV registou-se com a entrega da Dani ao Cândido Leonel.

A família

Professores de vida

Até completarem um ano, os cachorros vivem em casa de famílias de acolhimento que os ensinam a comportar-se em sociedade e lhes garantem um equilíbrio emocional imprescindível. No segundo ano de vida fazem como as crianças: vão para a escola de manhã e as famílias vão buscá-los ao fim do dia para voltarem a casa.

Quando chegam à escola, depois de terem sido doados, ou quando atingem a idade suficiente para serem separados das mães, no caso de terem nascido em Chão do Vento, os cachorros são entregues a famílias de acolhimento. É a Escola que se responsabiliza por todas as despesas dos pequenos cães, como por exemplo a alimentação e a saúde, e que garante também o necessário apoio técnico. Os cachorros irão permanecer nestas casas durante dez a doze meses das suas vidas, consoante a velocidade de aprendizagem.

O principal objectivo desta fase é socializar os animais. Na prática isto significa que os jovens cães têm que aprender, em primeiro lugar, hábitos de higiene. Também têm que perder pequenos vícios, como o de roubar comida da mesa, subir para os sofás e camas ou roer peças de mobiliário e objectos domésticos, por exemplo. Têm que acostumar-se a circular em todos os espaços onde, mais tarde, devam acompanhar uma pessoa cega, para que em todos os ambientes se sintam seguros e à-vontade. Têm ainda que começar a interiorizar as ordens que vão receber no futuro e a associá-las ao comportamento que se espera deles.

Membro da família com quatro patas

Aida Nunes, depois de receber por curtos períodos, como fins-de-semana e férias, cães colocados noutras famílias, assumiu por fim o acolhimento a tempo inteiro da Duda, que já foi entregue em Novembro de 2000, e agora da Fanny, que será atribuída a um utilizador cego ainda este ano. Como vive em Mortágua, conhecia já o trabalho levado a cabo pela Associação Beira-Aguieira de Apoio aos Deficientes Visuais e admirava o trabalho ali realizado.

«Durante a semana não temos todo o tempo que desejaríamos», explica. «Mas ao fim-de-semana procuramos levar a cadela a todos os sítios onde vamos: às compras, inclusivamente». Nos dias úteis é a filha de 13 anos quem se ocupa mais da cadela. Assim o animal habitua-se a circular em diferentes espaços e ambientes, com diversas intensidades de luz e ruído, com mais ou menos gente e familiariza-se com um grande número de situações. Mais tarde, quando for um cão-guia, vai ser mais difícil assustá-lo e vai manter-se sereno em todos os contextos.

A família de acolhimento é orientada pelos educadores da Escola. Conhece as ordens que, mais tarde, o cão vai ouvir do treinador e depois do candidato que o receber. Nestes primeiros meses, fundamentais no processo de aprendizagem do animal, Aida Nunes e a filha fazem um esforço para que a cadela comece a associar palavras a comportamentos. Informadas pelos educadores da Escola que, para a Fanny, uma passadeira para peões corresponde à palavra «linhas», mãe e filha repetem esse comando ao animal de cada vez que vão atravessar a estrada. Ela irá gradualmente interiorizar esta associação e quando, no exercício das suas funções de guia, o cego lhe ordenar «Busca linhas!» ela não hesitará em conduzi-lo à passadeira para peões mais próxima.

Um adeus difícil

«Sim, tenho uma grande consciência da responsabilidade que assumi ao acolher um futuro cão-guia de cegos», confirma Aida Nunes. «Mas é também a grandiosidade do trabalho destes animais que nos motiva a trabalhar com eles». Claro que esta admiração, o empenho na educação dos cães e o tempo que passam juntos acabam por criar um forte laço afectivo entre as pessoas e o animal. Por isso é sempre um drama quando chega a hora de dizer adeus.

«O que nos consola é a noção de que eles vão ser os olhos de pessoas que não podem ver», diz Aida Nunes, com ternura na voz. E recorda as visitas que a Duda fez à sua casa depois de já ter sido entregue ao seu utilizador cego: «Ela gostava de todos nós, mas tinha uma preferência especial pelo meu marido. Quando um dia foi lá a casa, ainda durante o estágio com o candidato, e viu o meu marido, quase sufocou de alegria. Claro que acabámos todos a chorar...»

E, de outra vez que se encontraram, já algum tempo passado sobre a entrega: «Ela correu todos os cantinhos, fez tudo o que fazia antes», recorda Aida Nunes. «Foi ao lugar onde habitualmente fazia as necessidades, depois foi ao meu quarto e a seguir ao da minha filha. Cheirou todos os cantos, tal e qual como fazia antes».

Embora se adaptem fácil e rapidamente ao utilizador e às novas pessoas com quem vão conviver, os cães nunca esquecem os amigos e manifestam sempre evidente prazer quando reencontram a sua família de acolhimento ou o educador.

A educação

Um curso com alunos especiais

Vítor Costa e Sabina Teixeira são os únicos treinadores de cães-guia em Portugal. Responderam a um anúncio e frequentaram formação específica em França. Começam o dia às 9:00 mas não sabem quando vão voltar a casa.

Na Escola de Cães-Guia de Mortágua existem dois educadores de cães, são as duas únicas pessoas com esta profissão em Portugal - Vítor Costa, de 29 anos, tem o bacharelato em Relações Públicas e Sabina Teixeira, de 30 anos, diplomada na Escola Agrária de Coimbra. Em comum têm o facto de não terem nenhuma experiência anterior no treino de cães e o de terem sido seleccionados a nível nacional entre trinta candidatos que responderam ao anúncio colocado na Imprensa pela ABAADV.

Fizeram uma formação de dois anos em França, onde não só aprenderam as técnicas que lhes permitem treinar cães como foram instruídos em disciplinas como a zootecnia, a gestão de canil, a veterinária e o comportamento animal, além de terem sido sensibilizados para as questões que envolvem a pessoa cega, a sua locomoção e psicologia. Desde que regressaram a Mortágua, em meados de 1998, são as duas únicas pessoas com esta profissão em Portugal, embora neste momento se encontre já uma terceira jovem a fazer formação em França, que deverá entregar o seu primeiro cão apenas em 2004.

A equipa faz-tudo

O Vítor e a Sabina sabem que têm de começar o seu trabalho diário na escola às 9:00 mas nunca sabem quando vão poder dá-lo por terminado.

«Em França eles nadam em dinheiro, por isso têm equipas muito grandes e podem dividir o trabalho», explica o Vítor. «Aqui toda a equipa da escola se multiplica para fazer todas as tarefas». Mas explica também onde encontra a motivação para o trabalho que faz: «Este é um trabalho que se faz por grande dedicação. É que nós estamos cá desde o princípio, vimos serem postos os primeiros tijolos, é como se isto fosse também nosso. Claro que eu preciso do meu salário para viver, mas a verdadeira compensação é vermos o nosso trabalho ter resultados».

Quando chegam de manhã, a primeira coisa que os educadores fazem é ir ao canil e falar com o tratador. Vão informar-se sobre como é que os cães passaram a noite, se manifestaram problemas de saúde ou comportamento. Depois, se há cachorros na maternidade, passam algum tempo com eles e fazem uma avaliação das suas características, para tentarem perceber desde logo se eles revelam ou não aptidões para o desempenho da tarefa que se espera deles. Observam as reacções deles aos estímulos que lhes dão e apreciam sinais de obediência, agressividade ou outros elementos do carácter que possam candidatá-los ou excluí-los do treino para cães-guia.

Segue-se um pouco de trabalho administrativo, com contactos regulares com as famílias de acolhimento, para se informarem se tudo corre bem, e resolução de problemas logísticos, como se há ou se é preciso encomendar mais ração.

Finalmente, cerca das 10:30, partem na carrinha, preparada para acomodar com conforto e segurança oito cães. O destino da viagem pode ser a vila de Mortágua, Tondela, Viseu ou até Coimbra. À chegada, cada um dos educadores retira um cão da carrinha e trabalha com ele durante pouco mais de uma hora. No final desse período restituem os dois primeiros cães à carrinha e saem com mais dois.

À tarde, no regresso à escola preenchem ainda o dossier pessoal de cada animal, registando os factos do dia: os progressos que fez, se se assustou com alguma coisa, como reagiu em cada situação. Claro que, entretanto, em muitos dias as seis horas que assinalam o fim do dia de trabalho já passaram há muito tempo!

Primeiras aulas

Entre os doze e os catorze meses de idade, e depois de ultrapassada a necessária operação de castração, os cães começam o seu treino específico para virem a ser guias de cegos.

Vítor Costa conta que se começa por coisas simples, que passam por tentar que o cão interiorize ordens básicas, como «senta», «deitou» e «não mexe». Faz-se também um trabalho de obediência, o que inclui, por exemplo, definir um espaço superior ao qual o cão não se deve afastar do dono, conseguir que ele venha rapidamente ao chamamento, estabelecer locais próprios para fazer as necessidades, fazer com que ande com e sem trela junto do dono, ter um jogo fácil de gerir, porque o animal vai brincar com uma pessoa cega.

A nível técnico é preciso que o cão saiba andar correctamente à trela na cidade, sempre em linha recta e bem pelo meio do passeio. Depois, progressivamente, o cão tem que perceber que deve parar em todas as saliências, sobretudo nas bermas dos passeios, que deve caminhar de forma pausada para estimular uma marcha constante no seu utilizador e que deve subir escadas em linha recta. É necessário também que o animal seja capaz de continuar concentrado no seu trabalho quando se cruzar com cães, gatos, pássaros ou outras fontes de estímulos que o possam distrair.

Desobediência inteligente

Quando estiverem bem assimiladas as etapas anteriores, aumenta-se progressivamente o grau de dificuldade da educação. O formador tem que contribuir para provocar no cão a consciência dos obstáculos e ensinar-lhe que, quando se desviar deles, deve dar espaço para que o seu dono também possa passar sem colidir. Por isso é que o educador bate nos objectos, para chamar a atenção do seu aluno, e em seguida apresenta-lhe a solução do problema, porque ele ainda não tem capacidade de encontrar por si as suas próprias soluções. É também nesta fase que o labrador aprende a procurar as passadeiras para peões à ordem de «busca linhas» e a ter um andamento mais lento quando se aproxima uma passagem estreita ou quando há uma mudança de piso.

Na fase final da educação do cão, e tendo sempre a certeza de que o que ficou para trás foi bem assimilado, entra-se então numa fase de teste. O educador coloca-se na posição da pessoa cega, vendando os olhos e manifestando que não percebe as situações que o animal lhe apresenta, para avaliar se ele realiza o seu trabalho com responsabilidade, seriedade e certeza, se manifesta preocupação para com o seu dono e se tem atenção e cuidado.

«Quando eu ponho as vendas fico mais inseguro, dou as ordens ao cão noutro tom de voz, pego no arnês de maneira diferente», explica o Vítor. «É necessário que o cão interprete estes sinais que eu lhe dou e se adapte a eles.”

O último critério que permite perceber se o cão já está pronto para ser entregue a um cego é avaliar, para além da sua competência técnica, a sua maturidade, isto é, a sua noção de responsabilidade.

«Se eu ordenar a um cão com dois ou três meses de treino que me apresente a passadeira, ele cumpre perfeitamente», exemplifica o Vítor. «Mas ainda não tem a maturidade suficiente para compreender que não pode atravessar a estrada se estiverem a passar carros naquele momento. Um cão responsável, nestes casos, desobedece de maneira inteligente: ainda que eu insista com ele para atravessar a rua, ele só executa a minha ordem quando for seguro. Da mesma forma, um cão responsável não leva o cego por dentro das poças nem vai a correr atrás de um gato».

Se a avaliação for positiva, isto é, se a responsabilidade e a consciência estiverem bem presentes no labrador, passa-se então à selecção de um candidato para iniciar o estágio de formação da dupla.

O estágio

A passos largos para uma vida nova

Findo o treino do cão-guia, há que encontrar um dono à sua medida. A equipa da escola analisa os nomes em lista de espera e selecciona o candidato cuja personalidade melhor se adapta à do cão. Depois do mais-que-desejado telefonema, a dupla conhece-se e começa finalmente o trabalho conjunto.

Quando um animal é dado como apto, toda a equipa da escola se reúne para verificar, entre os primeiros nomes da lista de espera, quem é o candidato que apresenta um perfil mais compatível com o do cão que vai ser atribuído. É então que o candidato seleccionado recebe o tão aguardado telefonema em que lhe é proposta uma data para o início do seu estágio. Sabina Teixeira conta como é: «O candidato chega à escola no domingo à noite ou na segunda-feira de manhã. Temos uma reunião com ele, em que tentamos ficar a saber dele mais alguma coisa do que já sabíamos pela entrevista que faz parte do processo de candidatura. Depois é a apresentação do cão ao utilizador».

«É sempre um momento muito emocionante, porque o candidato vem cheio de expectativas. Além disso, sempre que possível, gostamos que as famílias de acolhimento do cão estejam presentes, e então há lugar para as primeiras lágrimas, porque eles sabem que agora o animal já não vai voltar para casa».

Tantas emoções

A partir desse momento, o próprio educador não volta a dirigir a palavra ao labrador, quase o despreza totalmente. Isto é feito para que se faça facilmente a transferência de autoridade e o cão não faça confusão sobre quem é o seu dono. «Além disso, o labrador é um animal muito afectivo e que precisa de festas», esclarece Sabina. «A adaptação dele ao novo dono vai ser mais fácil se o cão não tiver mais ninguém que lhe dê festas. Então vai procurá-las no cego e, quando as encontrar, vai começar a aceitar melhor o facto de uma pessoa que ele não conhece de lado nenhum lhe dar ordens».

Apesar de saberem que tem de ser assim, também para os educadores, ou principalmente para eles, é muito difícil deixar de dirigir a palavra ao animal com quem conviveram diariamente durante dois anos. «Choro sempre, claro que choro. Para que é que vou mentir?», admite Sabina Teixeira, acrescentando: «Mas a compensação temo-la no fim do estágio, quando a dupla começa a funcionar, e às vezes ainda antes disso, quando de manhã vamos ter com o cego e com o cão e vemos que o cão já anda atrás do utilizador e já só quer o dono novo».

Feitas as apresentações, é preciso começar a trabalhar, porque há muitas coisas para aprender nos quinze dias que o estágio dura. «O candidato que não pense que só tem de aprender as ordens para dar ao cão!» - Filipa Paiva, gestora da Escola de Cães-Guia, é a primeira a alertar: «o cego precisa de aprender a sentir o cão através do arnês, o que é uma grande novidade em relação à bengala».

A partir desse primeiro dia de estágio, o cão é inteira responsabilidade do cego que tem, portanto, de saber como alimentá-lo, escová-lo, levá-lo à rua, pôr-lhe o arnês e tudo o mais que será necessário para que, nessa noite, quando toda a gente for para casa, possam ficar os dois sozinhos nas instalações da escola.

«É um período muito cansativo para os dois, para o cão e para a pessoa, porque têm que aprender e adaptar-se a muitas coisas de uma só vez, além de caminharem vários quilómetros por dia» - Sabina e Vítor são unânimes em considerar.

A meio da semana, quando o utilizador cego já está mais familiarizado com o cão, é promovido um lanche ou um jantar com a família de acolhimento. É a oportunidade para o cego agradecer o trabalho que fizeram com a educação do seu cão. E também para saber como é que ele se comporta em casa e no convívio social, porque disso nem os educadores nem a Escola o podem informar melhor. É nesse momento que o passado do labrador é desvendado e toda a gente fica a saber as tropelias que ele fez quando tinha três ou quatro meses!

“Diploma” de final de curso

Na sexta-feira o cego parte para o seu local de residência com o seu cão, mas ainda sem o arnês. «O arnês é como uma espécie de diploma de final de curso», diz Vítor Costa «e neste momento o curso ainda não está concluído, só entregamos o arnês ao cego quando tivermos a certeza de que a dupla reúne as condições mínimas e suficientes para funcionar bem».

Ainda falta a segunda semana, no local de residência do cego. Com a ajuda do educador que ali se desloca, o utilizador do cão-guia vai aprender a fazer os percursos habituais sem a bengala ou sem o braço de alguém que o guie, mas com a colaboração de um simpático labrador, treinado especificamente para esse fim. Entre as duas fases do estágio há um fim-de-semana, já em casa do cego, onde as recomendações são descanso e brincadeira, para que o cão e o dono se recomponham da intensa semana que tiveram.

Na primeira segunda-feira depois do fim do estágio começa uma nova vida para o cego que teve o privilégio, ainda restrito a poucas pessoas em Portugal, de receber um cão-guia. É verdade que, durante os primeiros tempos, vão ser frequentes os telefonemas para a Escola ou para o educador, cheios de dúvidas e receios. Mas com o tempo todas as arestas serão limadas e o cego será uma pessoa muito mais independente e autónoma, com o consequente aumento da auto-estima e de qualidade de vida.

A dupla

José e Delta – amigos inseparáveis

Queria um cão-guia para se deslocar mais facilmente no caos das ruas de Lisboa. Não imaginou que, para além de se esquecer o que eram nódoas negras, ainda viesse a conhecer tanta gente. E tudo isto por causa da Delta.

José Viríssimo, 39 anos, é utilizador de cão-guia há cerca de um ano e meio. Queria ter um cão-guia porque esperava que ele contribuísse para facilitar a sua locomoção e para lhe permitir a exploração de espaços que não conhecia bem. Além disso, como a sua opção de fundo é viver sozinho, esperava do animal uma boa companhia, não só para as caminhadas mas também para a vida. Finalmente, contava sentir-se mais seguro, com um cão do porte do labrador ao seu lado.

Soube que estava a ser criada a primeira escola portuguesa vocacionada para a educação destes animais através de um programa matinal de televisão. «Foi a minha mãe que viu e que me falou nisso, porque sabia que eu tinha a fantasia de ter um cão-guia desde os onze ou doze anos, que foi quando ceguei», conta José Viríssimo. «Depois eu liguei para a estação de televisão que tinha transmitido o programa e assim é que consegui o contacto da Escola de Mortágua. Isto já foi em Janeiro de 1996».

Telefonou, informou-se e preencheu o formulário de candidatura. Foi um dos cinco seleccionados para receber a Camila, a primeira cadela-guia treinada em Portugal. Mas a entrega não chegou a concretizar-se, porque a equipa da Escola teve receio que não corresse bem. «Expliquei-lhes que tinha uma vida muito activa, com idas a concertos e saídas com amigos, que fazia mais do que quatro percursos por dia e que, por outro lado, vivia sozinho», recorda José Viríssimo. «A escola achou que, como era o primeiro cão que estavam a entregar, era melhor que começassem por o destinar a alguém com uma vida mais tranquila».

Por motivos pessoais que causaram alguma instabilidade na sua vida, optou por esperar um pouco mais. Por isso é que só em Outubro de 2000 é que foi chamado para o início do estágio com a Delta, a sua nova companheira de quatro patas. «Lembro-me que a primeira semana do estágio, em Mortágua, foi muito complicada. Chovia, eu não conhecia a região,... Além disso o educador da Delta era muito exigente, queria que eu desse as ordens à cadela em tom de comando quando esse não é o meu tom de voz habitual. E depois nós, como cegos, estamos tão habituados a ir de encontro a obstáculos que, quando a cadela não evitava que eu roçasse, por exemplo, no espelho retrovisor de um carro, eu não me importava nada. Mas o treinador obrigava-me a repreendê-la».

Do Rossio a Santa Marta em 11 minutos

O regresso a casa também não foi fácil. José Viríssimo recorda que recebeu tantas recomendações que quase não lhe parecia estar no comboio com um cão normal. E no primeiro fim-de-semana em que esteve sozinho com a Delta teve muitos receios: de não estar a cuidar bem dela, dela querer ir à rua e ele não estar a saber entender isso, dela ser atropelada enquanto a passeava, por exemplo.

Foram igualmente difíceis os primeiros três meses de convívio. Talvez porque o animal ainda não gostasse muito do novo dono. «Além disso, a Delta andava muito devagarinho, com cuidado por causa de cada mínimo obstáculo», José Viríssimo explica. «E eu desesperava-me, a pensar se ela nunca ia andar mais depressa».

À medida que o tempo passava e que se tornava mais sólida a relação entre os dois elementos da dupla, os progressos foram-se fazendo sentir. E agora que já estão juntos há 16 meses, já se entendem tão bem que cometem proezas: num dia de pressa, dono e cadela foram a pé do Rossio à Rua de Santa Marta, em Lisboa, em apenas onze minutos!

Hoje, José Viríssimo reconhece que todas as expectativas que tinha quando se candidatou a um cão-guia foram alcançadas e até mesmo ultrapassadas. Diz que, por um lado, nunca mais soube o que era ter escoriações por causa dos frequentes embates nos obstáculos e, por outro, a cadela contribuiu de uma maneira inesperada para a sua sociabilização, porque as pessoas, por causa dela, acabam por se aproximar dele.

O dono da Delta conta também como a relação deles é boa e descontraída. Vão à praia juntos e ele deixa-a brincar livremente na água. Sempre que é possível, tira-lhe o arnês para ela estar mais à-vontade. Leva-a a todos os sítios onde vai, com cuidado para não a fazer correr nenhum risco. Já aconteceu deixar de ir ao Estádio da Luz por saber que estava quase esgotado e que, portanto, havia muitas probabilidades da cadela ser pisada.

Dicas para não desajudar

Entre os dois tudo funciona bem. Mas continuam a tropeçar em alguns problemas. «A ACAPO, quando se tornou parceira do processo, comprometeu-se a divulgar os cães-guia à sociedade», aponta José Viríssimo. «Mas eu sou de opinião que não cumpriu esse papel. Por isso é que continuam a querer impedir a entrada da Delta em vários lugares. Desde que ela está comigo já tive um ou dois problemas com taxistas e mais alguns outros aborrecimentos em pastelarias, bares e autocarros». José Viríssimo ilustra o seu ponto de vista com o exemplo do Hotel Zurique, em Lisboa, que recusa a entrada de quaisquer cães, incluindo os cães-guia.

José Viríssimo salienta ainda outros dois aspectos importantes na circulação pelas vias públicas de um cego acompanhado por um cão-guia. «As pessoas quando vêem um cego a ser guiado por um cão, devem ter o cuidado de não tentar ajudar, porque o cão fica atrapalhado no seu trabalho ao perceber que alguém está a segurar o braço do dono», explica. «Felizmente o cão sabe ajudar o cego melhor do que as pessoas e tem a capacidade, por exemplo, de escolher, entre duas portas do Metro, aquela que tem menos gente, ou de tirar o dono de uma situação complicada como são, por exemplo, as obras».

José Viríssimo alerta ainda para o facto das pessoas não deverem mexer nem chamar o cão quando ele está a trabalhar, porque isso vai distraí-lo, o que pode ter consequências mais ou menos sérias para a integridade física do utilizador.

Mas também há histórias positivas para contar sobre a integração dos cães-guias na sociedade. José Viríssimo frequenta o 4º ano da licenciatura em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Um dia aconteceu numa aula um episódio que o deixou emocionado: «A cadela, às vezes, treme. Eu até já perguntei ao veterinário, mas ele explicou-me que era normal, que era qualquer coisa a nível muscular. Nesse dia na aula a Delta estava a tremer e a professora convenceu-se que ela tinha frio. Para não prolongar muito a conversa, eu agarrei no meu casaco, pus no chão e deitei a cadela em cima dele. Qual não foi a minha surpresa quando a professora pegou no casaco dela e veio tapar a Delta!»

A lei

Ao abrigo da lei

O cão-guia de cego tem um estatuto especial e diferente dos outros animais. Assim, o seu utilizador tem o direito, que lhe é garantido pela lei, de circular em todos os locais públicos, inclusivamente naqueles que têm à entrada uma placa a dizer que é proibida a entrada de animais.

A lei prevê que o utilizador cego possa beneficiar da companhia do seu cão-guia em todos os lugares, nomeadamente escolas, hospitais, centros comerciais, estádios, cafés, cinemas e teatros. Apesar da situação já ter sido mais complicada, em Portugal ainda acontece os gerentes ou os responsáveis da segurança dos estabelecimentos públicos desconhecerem a lei e quererem impedir a entrada do cão, e consequentemente do seu dono.

Por isso o utilizador de cão-guia tem de andar sempre munido da documentação que garante oficialmente ao seu animal estes direitos. Para além do dístico que identifica o labrador como cão-guia, o seu dono tem que trazer consigo o Decreto-Lei nº 118/99 e a apólice de seguro do seu animal.

Apesar de todas estas precauções ainda há responsáveis por lojas que impedem a entrada da dupla. Em vários casos já foi necessário chamar a polícia para restabelecer a ordem.

Transcreve-se, seguidamente, o referido Decreto-Lei que regulamenta em Portugal a presença do cão-guia em locais públicos:

Cães-guia - DL 118-99

DATA: Quarta feira, 14 de Abril de 1999

NÚMERO: 87/99 SÉRIE I A

EMISSOR: Ministério do Trabalho e da Solidariedade

DIPLOMA/ACTO: Decreto Lei n.º 118/99

SUMÁRIO:

Estabelece o direito de acessibilidade dos deficientes visuais acompanhados de «cães-guia» a locais, transportes e estabelecimentos de acesso público, bem como as condições a que estão sujeitos estes animais;

O presente diploma introduz no ordenamento jurídico português regras destinadas a facilitar a missão de meio auxiliar de locomoção que os «cães-guia» acompanhantes de deficientes visuais desempenham, colmatando-se assim uma lacuna legislativa que obstava, afinal, ao pleno cumprimento da missão que os mesmos animais são chamados a desempenhar.

Em 1982, foi publicada legislação referente às condições de acesso dos «cães-guia» aos transportes públicos. Referimo-nos à Portaria n.º 83/82, de 19 de Janeiro, e ao Decreto Regulamentar n.º 18/82, de 8 de Abril, que vieram regular, respectivamente, o acesso dos «cães-guia» acompanhantes de deficientes visuais aos comboios e aos autocarros de transporte público de passageiros.

As medidas consignadas nesses diplomas, embora viessem a ver a sua aplicabilidade reforçada pelo artigo 7.º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, são insuficientes, porque tratam exclusivamente do acesso aos transportes e não têm em consideração bastante o adestramento destes animais, ao imporem condições de utilização que são manifestamente injustificadas, aliás, consideradas na época de natureza transitória, a serem eliminadas «quando estiverem criadas as estruturas necessárias ao adestramento especial dos ‘cães-guia’ com vista ao pleno desempenho da sua função de meio auxiliar de locomoção, por forma acessível a todos os invisuais», o que veio a efectivar-se com a criação da escola de «cães-guia» de cegos.

Assim, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, Lei n.º 9/89, de 2 de Maio, e nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta, para valer como lei geral da República, o seguinte:

Artigo 1.º

Objecto

O presente diploma estabelece o direito de acessibilidade dos deficientes visuais acompanhados de cães-guia a locais, transportes e estabelecimentos de acesso público, e, bem assim, as condições a que estão sujeitos estes animais quando no desempenho da sua missão.

Artigo 2.º

Direito de acesso

Os deficientes visuais têm o direito a fazer-se acompanhar de cães-guia no acesso aos seguintes locais:

a) Transportes públicos, nomeadamente aeronaves das transportadoras aéreas nacionais, barcos, comboios, autocarros, carros eléctricos, metropolitano e táxis;

b) Estabelecimentos escolares, públicos ou privados;

c) Centros de formação profissional ou de reabilitação;

d) Recintos desportivos de qualquer natureza, designadamente estádios, pavilhões;

gimnodesportivos, piscinas e outros;

e) Salas e recintos de espectáculos ou de jogos;

f) Edifícios dos serviços da administração pública central, regional e local, incluindo os institutos públicos;

g) Estabelecimentos de saúde, públicos ou privados;

h) Locais de prestação de serviços abertos ao público em geral, tais como estabelecimentos bancários, seguradoras, correios e outros;

i) Estabelecimentos de comércio, incluindo centros comerciais, hipermercados e supermercados;

j) Estabelecimentos relacionados com a indústria da restauração e do turismo, incluindo restaurantes, cafetarias, casas de bebidas e outros abertos ao público;

k) Estabelecimentos de alojamento, como hotéis, residenciais, pensões e outros similares;

l) Lares e casas de repouso;

m) Locais de lazer e de turismo em geral, como praias, parques de campismo, termas, jardins e outros;

n) Locais de emprego.

Artigo 3.º

Exercício do direito de acesso

1 - O direito de acesso previsto no artigo anterior não implica qualquer custo suplementar para o deficiente visual e prevalece sobre quaisquer proibições que contrariem o disposto no presente diploma, ainda que assinaladas por placas ou outros sinais distintivos.;

2 - Nos casos em que as especiais características, natureza ou finalidades dos locais o determinem, nomeadamente no que respeita ao transporte aéreo, o direito de acesso a que se refere o artigo anterior poderá ser objecto de regulamentação que explicite o modo concreto do seu exercício.

3 - O direito de acesso não pode ser exercido enquanto o animal apresentar sinais manifestos de doença, agressividade, falta de asseio, apresente qualquer outra característica anormal susceptível de provocar receios fundados para as pessoas ou outros animais, ou se comporte de forma inadequada de modo a perturbar o normal funcionamento do local em causa.

Artigo 4.º

Cães-guia em treino

1 - As condições de acesso previstas no presente diploma são aplicáveis aos

cães-guia em treino, desde que acompanhados pelo respectivo tratador ou pela família de acolhimento».

2 - Consideram-se famílias de acolhimento as que recebem os cães-guia durante a fase de adaptação do animal à convivência humana e que estejam credenciadas como tal.

Artigo 5.º

Credenciação

1 - O estatuto de cão-guia deve ser credenciado por um cartão próprio e um distintivo, passados por estabelecimento idóneo, nacional ou estrangeiro, que certifique o adestramento do animal como cão-guia em termos a regulamentar.

2 - A escola de cães-guia emitirá igualmente um cartão de identificação para as famílias de acolhimento e para os cães-guia em treino.

Artigo 6.º

Elementos comprovativos

1 - Quando utilizado como cão-guia, o animal deverá transportar de modo bem visível o distintivo a que se refere o artigo anterior, que assumirá carácter oficial e que o identifica como tal.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o utilizador do cão-guia deverá comprovar, sempre que necessário, o seguinte:

a)O adestramento do animal como cão-guia, tal como se define no artigo anterior, sem prejuízo da restante legislação aplicável, nomeadamente a referente à protecção de animais de companhia;

b) Que o animal cumpre os requisitos sanitários legalmente exigidos;

c) Que está em vigor o seguro previsto no n.º 2 do artigo seguinte.

Artigo 7.º

Responsabilidade

1 - No exercício do direito de acesso previsto no artigo 2.º, o deficiente visual deverá zelar pelo correcto comportamento do animal, sendo responsável, nos termos previstos na lei geral, pelos danos que este venha a causar a terceiros.

2 - O exercício dos direitos previstos no presente diploma depende da constituição prévia de um seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros por cães-guia.

Artigo 8.º

Norma transitória

O presente diploma não se aplica aos cães auxiliares de deficientes visuais que já estejam a ser utilizados à data da sua entrada em vigor.

Artigo 9.º

Norma revogatória

São revogados a Portaria n.º 83/82, de 19 de Janeiro, e o Decreto Regulamentar n.º 18/82, de 8 de Abril.

Artigo 10.º

Entrada em vigor

O presente diploma entra em vigor 90 dias após a sua publicação.

Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 4 de Fevereiro de 1999.

António Manuel de Oliveira Guterres

Os números

UM PRESENTE DE 3.000 CONTOS

Apesar da educação de cada cão custar cerca de 3.000 contos, a Escola engrega-o gratuitamente ao cego e sobretudo devido a um subsídio atribuído pela Segurança Social. Como só dispõe de 2 educadores, não pode produzir mais do que 8 cães por ano, enquanto há cerca de 70 nomes em lista de espera.

O cão-guia é entregue gratuitamente ao utilizador cego, mas tem um custo que resulta das despesas de manutenção da escola, salários dos funcionários, alimentação, saúde, material, entre outras coisas. O custo final de um cão pronto para entrega ronda os 3.000 contos. Contudo este valor não corresponde totalmente à realidade, já que não é contabilizado o trabalho indispensável, mas voluntário, das famílias de acolhimento.

Neste momento foram atribuídos 18 cães a 20 pessoas, mas infelizmente houve um animal que morreu poucos meses após a entrega ao utilizador cego, em consequência de um ataque cardíaco. Esta disparidade entre o número de cães atribuídos e o número de pessoas contempladas justifica-se porque duas cadelas, a Dusca e a Farrusca, encontram-se ao serviço de casais. Foram treinadas com essa especificidade: tanto guiam um dos cônjuges em separado como os dois simultaneamente. Este trabalho exige extraordinárias condições físicas e técnicas dos animais.

Destes 18 cães, 15 são fêmeas e apenas 3 são machos. Embora seja mais ou menos unânime que as cadelas são mais dóceis que os cães, não têm, porém, nenhuma aptidão especial sobre eles para serem guias de cegos. Estes números devem-se ao facto de muitos dos cachorros terem sido oferecidos à escola de Mortágua por criadores, que preferem doar as fêmeas, já que os machos são mais comercializáveis.

Também não é indiferente a esta questão a corpulência do animal: um cão-guia não pode ser muito pequeno, senão o seu corpo fica muito longe do do utilizador, que não sentirá os seus movimentos; mas também não pode ser muito grande, devido aos pequenos espaços que irá frequentar, nomeadamente a casa do cego ou os transportes públicos. Por isso as fêmeas, normalmente menos corpulentas, tornam-se mais fáceis de transportar e acomodar. No entanto nada disto exclui que se eduquem machos e que estes desempenhem a sua actividade com o mesmo sucesso.

Os cães-guia encontram-se principalmente nos grandes centros urbanos, onde os cegos desenvolvem as suas actividades profissionais. Sete estão na área de Lisboa, dois no Porto, dois no Algarve e os outros espalhados pelo norte.

Oito cães por ano

Estão a ser entregues oito cães por ano, à razão de quatro por cada educador. Neste momento encontra-se em França uma terceira pessoa a fazer formação para educadora de cães-guia, que deverá regressar dentro de dois anos. Nessa altura a escola espera poder aumentar o número de entregas anuais para doze animais.

Estão cerca de setenta nomes em lista de espera para receber um cão-guia, o que não significa que todos reúnam as condições necessárias para o obter.

65% de subsídio

A Segurança Social, através de um contrato atípico celebrado com a ABAADV, atribui à escola de cães-guia um subsídio por cada dupla cego/cão-guia formada. Mas este montante representa apenas 65% dos custos totais da instituição, o resto do dinheiro é conseguido através de diversos expedientes. A comida dos animais, por exemplo, é oferecida por uma empresa distribuidora de uma marca espanhola de rações. Outras empresas patrocinam os medicamentos que os cães necessitem.

Os primeiros cachorros foram obtidos através de doações de criadores e particulares. Actualmente, em Chão do Vento já se faz reprodução, tanto que até a sala do café foi convertida em maternidade. Mas as ofertas de pequenos Retriever do Labrador continuam a chegar de norte a sul do país. Como nem todos os animais podem ser aproveitados para o treino de cães-guia, quer por impossibilidade prática de educar um número muito elevado de animais quer pela sua falta de perfil para desenvolver esta actividade, alguns são vendidos, para que o produto dessa venda reverta a favor da escola.

A ABAADV recorre também ao Instituto de Emprego e Formação Profissional e ao Secretariado Nacional de Reabilitação, entre outras entidades, quando estas disponibilizam algumas verbas.

A Câmara Municipal de Mortágua nunca nega o seu apoio e responsabiliza-se pela manutenção do espaço da escola, além de lhe atribuir um subsídio.

Outras câmaras do país, que primeiro recusaram o seu apoio a este projecto com o argumento de que ele não se inseria na sua área de jurisdição, começam agora a compreender que o trabalho realizado pela ABAADV beneficia todo o país, de Norte a Sul e do litoral ao interior. Efectivamente, estão já entregues cães de Guimarães a Loulé e da Figueira da Foz a Castelo-Branco. Assim outros municípios, sobretudo aqueles em que já residem cães-guia, juntam-se ao de Mortágua para darem uma ajuda à ABAADV.

E os sócios são muito importantes, porque os donativos que fazem à escola contribuem decisivamente para assegurar um dos princípios básicos da filosofia desta instituição, que é a gratuitidade da entrega do cão ao cego.