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pelos olhos de Homero - blog de Manfas Petrónio

quem tem medo do cego mau

por Manfas Petrónio

Na vida como no cinema, há os bonzinhos dum lado e os malvados do outro. Ora, vivem vivos na vida de todos os dias uns seres que antes de serem o que estão, "cegos", são o que são, primeiramente, pessoas. Como tal, portanto, têm lá os seus defeitos e qualidades. Para o público em geral, porém, que também lá tem a sua grelha de ideias todas feitas à luz fosca do senso comum, a ideia que vigora, embora sem contornos definidos, é o cego bicho estranho que a gente não sabe como pegar, envolto em escuridão, meio perdido e descoordenado, que se leva a bel-prazer dali para acolá como se fosse um boneco de palha. Tem-se pena dele, mas a sua sorte como homem ou mulher que é, verdadeiramente, é o que menos interessa. A comiseração substitui o afecto, o espírito de entreajuda é esmagado pela mal disfarçada demonstração de superioridade de quem acha que ajuda desinteressadamente. Aqui, manda a hipocrisia que se diga que é só boa intenção o que move a generalidade das pessoas, mas isto nem sempre é assim, porquanto, da mesma forma que a pessoa cega que rejeita o que não quer não deve, por isso, ser rejeitada, também nem sempre um gesto aparentemente bem intencionado é regido pela suposta boa fé. Por isso é que até a sabedoria popular diz que de boas intenções está o inferno cheio.
Na vida como no cinema, pois, alguém tem que ser o mau da fita; e quando é o cego a protagonizar este papel, tantas vezes irreverente a contragosto, as fitas que faz saem-lhe caras moral e, às vezes, fisicamente. Paga com o opróbrio e as lágrimas da vergonha a ousadia de afrontar a moral cristã que tão imperativamente lhe oferece uma salvação que ele não quer.
Este cego, que deve ser angélico, renega a sua condição humilde;que deve depositar toda a confiança na bondade alheia e arrojar aos pés dos outros a sua própria vontade, rejeita viver agarrado e de companhia como o anónimo guarda-livros Bernardo Soares. É este o cego mau, o átomo a mais que se levantou, que não sabe por onde vai nem para onde vai, mas não vai para onde o quer levar a caridosa imposição do despeitado benfeitor que nele aposta o seu lugar no céu. Este é o homem ou a mulher que tem de arcar com a rejeição daqueles a quem apenas pede respeito, aqueles a quem uma mal compreendida noção de solidariedade social os leva a ver defraldadas as suas expectativas e inflingir a pessoa cega uma penalização social que, incidiosamente, acaba por levá-la à
auto-segregação. Tal fenómeno, aliás, propício a conseqências psicológicas polarizadas, não é alheio à própria assunção do nosso "cego mau".
Aqui, o cego mau pensa que, neste particular assunto do trato social, alguém tem que romper com a tradição judaico-cristã de permanecer dócil, amorfo e passento ao efeito ancestral de preconceitos que, com serem milenarmente arreigados, nem por isso serão mais legítimos ou recomendáveis.