Pedro, um lutador até ao fim
Tive a honra de conhecer um jovem lutador que me marcou de tal forma que, quando sinto-me fraquejar, evoco o seu exemplo de imensa coragem.
O seu exemplo e a sua filosofia de vida servirão de estímulo àqueles que se encontrarem em situação semelhante ou que vêem as dificuldades como uma barreira intransponível. As barreiras existem para serem superadas e não para as encararmos como uma derrota, porque sem elAs não seria possível o Homem progredir e melhorar-se.
Quando conheci o Pedro, um jovem surdocego de dezanove anos, fiquei muito contente por ser mais um surdocego a frequentar a universidade. Com ele, já eram quatro jovens cheios de projectos de vida e de uma determinaçãoque muitas pessoas sem limitações físicas não têm.
Além disso, éramos jovens na flor da mocidade, vigorosos e com o único desejo de sermos felizes como qualquer outro ser humano. Não queríamos ser objecto da piedade alheia, nem da admiração dos incrédulos. Tão somente desejávamos viver como seres dotados e livres.
A nossa amizade foi breve mas não deixou de ser marcante e verdadeira. Estejas onde estiveres, obrigado por teres sido meu amigo e obrigado por me teres demonstrado com a tua coragem que cada minuto da nossa vida é precioso.
A leucemia é uma doença terrível e muito incapacitante. Se não fosse ela, hoje serias um excelente veterinário, dedicado aos animais que também são nossos irmãos.
Desde muito pequenino, Pedro teve de aprender a lidar com uma doença ingrata e stressante tanto para ele como para a sua família. Aos cinco anos de idade conheceu o silêncio, um silêncio que o isolava do mundo dos sons, das conversas, dos risos, das músicas mais apaixonadas, dos pequenos sons que constituem a alegria do nosso viver. E muito cedo Pedro teve de aprender a suportar a discriminação na escola, o sentimento de ser diferente dos outros, e a solidão de não poder participar nas conversas e actividades sociais que requeriam a audição.
Ainda para não falar da doença, dos tratamentos agressivos, das dores, das noites mal dormidas e da perda progressiva e iminente da visão...
Contudo, Pedro era forte, tirava boas notas, esforçava-se muito e ainda conseguia sorrir, apesar da tristeza profunda que sentia.
O seu lema era viver um dia de cada vez. Assim, tentava ocupar o tempo com algo útil: lia, jogava computador, recebia a visita de amigos leais, estudava e reunia-se com a família que o amava muito.
Porém, quando percebeu que estava a ficar cego, foi como um terramoto violento no seu interior. O pouco que tinha conquistado com grande esforço - A leitura labial, A leitura e escrita a negro, A utilização do computador e A autonomia no geral - foi um golpe duro...
Ter de aprender tudo de novo é uma tarefa que requer grande determinação e persistência. Não se deve esperar que uma pessoa aprenda língua gestual, Braille e Orientação e Mobilidade em poucas semanas, porque é preciso dar tempo para que ela se possa adaptar à nova realidade, tarefa esta muito difícil com muitos reajustes psicológicos e sobretudo emocionais. A revolta, a negação, os sentimentos depressivos, terão de ser ultrapassados para que, com a aceitação, se possa realizar novas aprendizagens.
Pedro não foi exepção. As dores físicas juntaram-se às dores psicológicas de quem se sabe privado dos sentidos essenciais da comunicação. Uma vida de obstáculos cada vez mais difíceis deixara-o de rastos, mas nem mesmo assim cometeu uma loucura.
Pedro era um guerreiro tenaz, e com essa tenacidade concluiu o ensino secundário e matriculou-se no curso de veterinária na Universidade Lusófona de Lisboa, no ano de 2009 e 2010.
Primeiro teve de adaptar-se como eu fiz quando ingressei na mesma universidade. Tinha duas cadeiras e passou nos exames. Os mais cépticos pensarão que teve ajuda, mas enganam-se, porque Pedro estudou a mesma matéria que os seus colegas e teve de fazer o triplo de esforço. Como não podia ouvir e ver nas aulas, tinha de fazer um grande esforço de assimilação de conceitos técnicos e muito complexos.
O único centro para surdocegos do país pôs-lhe à disposição máquina braille, TV lupa, um formador de língua gestual e um computador adaptado. Contudo, todo o esforço era seu, a sua dedicação era fruto da sua vontade, e o mérito era todo seu. Porque nós lutamos contra a dúvida, nós a temos de vencer ou ficamos estendidos no caminho.
A alegria de Pedro foi sincera ao receber as notas dos exames. os efeitos secundários da quimioterapia eram terríveis. Na sua vida teve uma pneumonia grave. Também eu já tive uma pneumonia grave e golfei muito sangue.
Quando Pedro me procurava no centro para conversarmos eu acolhia-o sempre com um sorriso. Sentia que éramos amigos e irmãos, porque nos compreendíamos bem e eu ajudava-o na língua gestual.
Ele irradiava simpatia e juventude, apesar das muitas dores, da fadiga de noites em claro, e do sofrimento. Muitas vezes, enquanto fazíamos gestos nas mãos um do outro, comprendi pelos seus movimentos lentos que estava com dores no braço. Então ele contou-me como lhe doía e como lhe custava a sentir. Eu ficava triste por ele, mas a minha amizade aumentava e não o deixaria sozinho.
Um certo dia, o director do Centro perguntou-me se eu não queria ser o professor de braille do Pedro. Eu aceitei com alegria e disse-lhe que adorava ensinar braille. Então ele mostrou-se satisfeito e disse que ia ser bom para o Pedro, porque tínhamos idades próximas e eu podia constituir um estímulo de força para o Pedro.
Fiz o meu voluntariado com entusiasmo. Estava ansioso por poder ser útil e poder partilhar tudo o que sabia. Começámos por jogar um dominó táctil para que o Pedro desenvolvesse a sensibilidade dos dedos. Quando estava a ensinar-lhe as letras, fui afastado pela inveja dos outros, que me disseram que estava a ensiná-lo mal. Mais tarde, eu soube que estava a fazer certo, mas fiquei triste por não ser o professor de braille do Pedro.
Entretanto, terminei os meus estudos em Junho de 2010 e encontrava-me em casa a descansar quando recebi a triste notícia que o Pedro tinha falecido dois meses depois de completar 20 anos. Fiquei com os olhos marejados e senti muito a perda de um grande amigo, que foi um lutador até ao fim.
Faleceu no dia 10 de Setembro de 2010.
Quando me sinto mais em baixo penso nele e pergunto-me onde teria ele buscado tanta coragem? Nós queixamo-nos de coisas mínimas e por coisas mínimas nos sentimos as pessoas mais infelizes do mundo, mas as nossas queixas não são nada ao lado de uma vida com dores bem piores mas com uma coragem que nos ultrapassa.
Deixo-te esta homenagem, amigo Pedro, que soubeste viver a vida até ao fim. Foste a prova viva de que não existe nada é mais forte do que a nossa vontade. Que a tua passagem pela Terra sirva de inspiração àqueles que pensam que as limitações são impossíveis de transpor.
Rio Maior 3 de junho de 2013
-
Partilhe no Facebook
no Twitter
- 1862 leituras