Está aqui

Uma experiência de inclusão

por Lerparaver

Estava quente aquela tarde de junho. Na sede da Sociedade Recreio e Progresso Seixense, em Seixas da Beira, reuniu um grupo de utentes do Projeto CLDS (Contrato Local de Desenvolvimento Social) do Concelho de Oliveira do Hospital, sob a orientação de duas responsáveis. (Os projetos CLDS duraram três anos e vigoraram até 30 de setembro em muitas localidades, visando combater o isolamento da população sénior).

Preparávamo-nos para uma nova sessão no âmbito da atividade “Mais Vida”, item do programa deste Projeto.

Eu já tinha participado pelo menos em duas: uma destinada a enfeitar um frasco de boca larga com fios de algodão, outra a fazer com pauzinhos uma moldura para fotografias. Em ambos os casos tomei conhecimento daquelas tarefas pouco entusiasmada: previa que o meu desempenho seria modesto, que ia precisar de muita ajuda. Ainda assim resisti à tentação de faltar. Primeiro porque não tenho que me envergonhar de mostrar as minhas limitações; depois porque as limitações são vencidas a cada aprendizado novo; e finalmente porque sempre valorizei o trabalho manual.

Compareci, pois, para aproveitar aquelas oportunidades que me eram oferecidas de mão beijada. Há oportunidades que surgem só uma vez…

O saldo foi positivo. Em boa verdade, a moldura que também eu trouxe para casa, e que por complacência disseram ser minha, foi toda construída por outras mãos: alinhar os pauzinhos e colá-los usando uma pistola, dispor os fios em cruz - isso transcendia penosamente a destreza das minhas! Mas constatei que daqueles materiais vulgares pode nascer uma moldura bonita. Já na decoração do frasco fui eu que cortei os fios e fiz os cordões, reaprendendo com prazer o movimento já esquecido dos dedos.

Naquela tarde íammos testar a nossa cultura geral. Por uma vez eu levava, enfim, a expectativa de fazer boa figura. Tinha quase obrigação. Dedico grande parte da minha já longa vida a ocupações de cariz intelectual, julgava ter chegado a hora de colher os louros.

No computador colocado em cima da secretária as responsáveis levavam mais de uma centena de perguntas prontas a disparar. Antes, porém repartiram as utentes por duas equipas conforme os lugares onde nos tínhamos aleatoriamente sentado, no intuito de condimentar aquele teste recreativo com uma pitada de entusiasmo. Neste sentido, alguém alvitrou que no fim a equipa que perdesse pagaria um gelado.

Saiu a primeira questão. Numa tocante consideração para comigo, as responsáveis tentaram criar um exemplo prático de inclusão: tinham gravado em áudio, na véspera, o enunciado de cada questão, e reproduziam-no ao mesmo tempo que o texto ficava visível no ecrã. Que Bom! Graças a este complemento eu podia participar também ativamente.

Algumas respostas ficavam em aberto, para outras tantas eram dadas três hipóteses. Quando uma situação deste tipo ocorreu pela primeira vez, caiu-me a alma aos pés! As responsáveis só então se aperceberam, constrangidas, de que o facto de não terem lido também as hipóteses inviabilizava a minha participação em igualdade de circunstâncias.

Quando eu tinha a resposta na ponta da língua, o teste decorria sem sobressaltos; quando eu não sabia responder, ou tinha dúvidas, pedia de imediato a leitura das opções, leitura que era feita de bom grado mais que, por mais rápida que fosse, sempre terminava a destempo, em prejuízo próprio e da minha equipa. Nada de grave; aquilo era uma brincadeira.

Pior estava para vir. Várias questões começavam com as palavras “Observe a imagem.” Aí eu ficava literalmente, irremediavelmente fora do jogo. Passado o breve desconforto despoletado por aquela introdução, eu desligava, como em represália espontânea, permitindo-me descansar daquele esforço acelerado e gozar uns breves momentos de evasão.

Dei comigo apensar: E se este teste fosse na Escola, a sério? Como se sentem os jovens cegos, especialmente os que ainda dominam mal as ferramentas específicas, em escolas ditas inclusivas? Que impacto tem na autoestima deles ficarem “fora do contexto”? Ainda se fosse só de longe a longe…
Mas receio que esta marginalização, tão involuntária quanto inevitável por causa da disfuncionalidade do principal órgão dos sentidos, aconteça com maior frequência do que seria aceitável, já que os métodos de ensino apelam muito a estímulos visuais. Com a agravante de o professor de Educação Especial não ter condições para prestar um apoio integral e sempre atempado. Felizmente há alunos dotados de uma persistente força de vontade, de capacidades acima da média e com ajudas de retaguarda incansáveis. É óbvio que a conjugação destes fatores facilita o sucesso, preenche muitas lacunas da escola inclusiva.

Para mim, desligar resolveu o problema; para eles, de certo que não. Está em causa a sua preparação escolar, da qual dependerá em grande parte a sua qualidade de vida.

Voltando às nossas questões com base na observação de imagens: Mesmo que tivesse sido possível fornecerem-me as descrições em braille, mesmo que tivesse surgido a ideia de as gravar em áudio previamente, nada surtiria efeito: Eu não leria, nem ouviria ler tudo a tempo de responder; além de que a audição das descrições incomodaria as demais participantes. A menos que eu usasse auscultadores. Só que, com eles nos ouvidos, eu ficaria parcialmente isolada do meio circundante.

No caso vertente, este tipo de questões deveria ter sido abolido?
Não. Todas as respondentes, excepto eu, usufruem dos seus cinco sentidos; portanto a estratégia sensata consistiu em optarem pelo mal menor, ou seja, sacrificar a parte pelo todo. As questões a partir da observação de imagens afiguram-se-me insubstituíveis, pois o aperfeiçoamento pelo treino da concentração no que os olhos veem, e da memória visual, é tão importante como melhorar a concentração no que se ouve e a memória auditiva.

Vale-nos o consolo de que a ausência da leitura das opções de resposta em formato áudio é fácil de corrigir. As organizadoras deste teste não repetirão a falha em presença de uma situação idêntica. Os erros aborrecem-nos, alguns são difíceis de corrigir; pporém eles dão-nos lições, às vezes duras, na própria pele, as quais por isso mesmo ficam guardadas para sempre no nosso espólio intelectual. Tornam-nos mais sábios, mais tolerantes.

A minha equipa perdeu. Era previsível. Mesmo assim a notícia do resultado não passou sem deixar um leve rasto de tristeza. Em mim. Talvez em cada uma de nós. Ninguém gosta de perder, nem a feijões, não é? Esta consciência da susceptibilidade humana terá sinalizado que a derrota já nos bastava. Porque sobre o gelado… Nem uma palavra. Por solidariedade, diria eu, fomos tacitamente dispensadas de o pagar.