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Congresso de turismo acessível

por Lerparaver

CONGRESSO DE TURISMO ACESSÍVEL
LOUSÃ 20 DE ABRIL DE 2007

Maria Teresa da Silva Maia

GOSTO DA VIDA – GOSTO DO MUNDO!

“Mas como eu ia dizendo, não há nada melhor que as férias. O ano passado tínhamos decidido ir até Espanha.
Mais propriamente Sevilha e Granada.” In Alice Vieira, “Chocolate à Chuva”.

INTRODUÇÃO

Madeira, Açores, cabo-verde, S. Tomé, Moçambique, Ceuta,
Marrocos, República da Maurícia, Paris, Londres, Madrid, Barcelona, Sevilha, Macau, Brasil, México, Vietname, Equador, Martinica, etc...
É muito! Quase inacreditável, mas impõe-se porque é verdade.
Parece estranho, pois parece, mas é real. E não viajo em ficção como estes: “O meu pai pensa que o simples facto de pisar a terra de uma cidade é o suficiente para ficar a conhecê-la.”
Citando, novamente, Alice Vieira e o seu livro “Chocolate à Chuva”.

DISCURSO DO ABSURDO

Sempre que digo, ou tento dizer, que gosto muito de viajar ou de passear, confronto-me com uma reacção tão semelhante em todas as pessoas que me escutam (umas vezes verbalizada, outras apenas esboçada num engasgar ou num mastigar de palavras, variando a verbalização ou o esboço da mesma, no grau de urbanidade do meu ou dos meus interlocutores. implícita ou explícita, a questão é sempre a mesma; banal, comum, corriqueira, tão ao jeito do senso comum, sempre apostado em definições absolutas e irrepreensíveis sobre todas as coisas.

“Mas se ela não vê para que vai viajar?

É pertinente esta dúvida, esta quase proibição de alguém que não vê ter a mania ou o despautério de fazer uma coisa que – no entendimento mais generalizado, atribui exclusivamente a quem vê......Alguns entenderão esta “mania” como uma.... aberração....!

Porém a vida também tem seus caprichos, sempre houve quem não se conformasse com normas absolutas, estanques, impostas arbitrariamente.

Então temos aqui um excelente exemplo para reflectirmos nos paradigmas que os preconceitos – e não os conceitos – nos querem impor como norma e conduta de vida banal ou banalizada por aquilo que os outros acham que deve ser a vida de todos e de cada um!

Viajar é para mim das coisas que mais prazer me dão. Há na minha genética uma forte componente deste prazer, pois o pai, o irmão e alguns sobrinhos padecem deste mesmo mal. A grande diferença é que todos eles vêem e portanto nada de “extravagante” ocorre desse tão delicioso prazer....

Porém comigo o senso comum cola-me de imediato a etiqueta do impossível, do absurdo.

Obviamente que para viajar é preciso dispôr de meios, pois as viagens são caras,; porém não é esse o aspecto da questão que aqui me traz, pois ele não tem directamente a ver com o facto de eu ser cega.

Já viajei bastante, já percorri uma fatia significativa do Mundo, embora ele seja muito vasto...

O que ocorre então de particular e de específico quando uma pessoa cega quer viajar e gosta de o fazer, tem prazer em o fazer e está disposta, por todos os meios a fruir (até à última gota) todo o que for possível.

Vejamos:

Uma pessoa cega não pode viajar sozinha. Não tem autonomia para se deslocar em espaços desconhecidos como aeroportos, portos de mar, praias, museus, centros históricos, restaurantes, grutas, igrejas, mesquitas ect.

Também não consegue fruir a beleza, o encanto dos lugares se não for ajudada por alguém que lhe ”empreste os seus olhos”! Mas esse alguém não pode ser qualquer pessoa. Tem de ser alguém que dê essa ajuda como um prazer e não como um frete. Tem de ela própria ter características de sensibilidade para captar e transmitir o que é relevante e não o que não tem interesse; tem de haver um conhecimento mínimo e um mínimo entendimento entre o cego e o seu companheiro. O que por vezes não é fácil. Devem gostar das mesmas coisas, ter os mesmos interesses face à viagem que vão empreender.

Viajar pressupõe alguma aventura. É pois conveniente que o espírito de aventura reine quanto baste para que os imprevistos que sempre acontecem não estraguem o prazer da mesma. Mas há igualmente que ter prudência para não correr riscos desnecessários nem tão pouco, estragar a alegria de quem nos acompanha com minudências sem valor; dito de outro modo, a cortesia e o respeito mútuo devem ser ingredientes do quotidiano.

ERA UMA VEZ...

Cada nova viagem tem o sabor de uma primeira vez!
Tudo começa com a escolha e a decisão de “onde ir?” Há que acertar datas de férias com quem me acompanha ou acertar a data do grupo em que me irei inserir.
Há que procurar a localização num mapa da terra ou terras do meu destino. Mas aqui deparo-me com mais uma dificuldade: quase não existem mapas em relevo, e os que existem são de poucos pormenores uma vez que um mapa táctil ocupa muito espaço e portanto não pode englobar pormenores. E também para esta pesquisa tenho de me socorrer de alguém que veja e me ajude a percorrer o mapa e me vá lendo o que o acompanha.
Depois, começa o frenesim... Fazer a mala, juntar lentamente tudo o que vier à cabeça e que possa ter utilidade para a viagem. A preparação da mala: as roupas, os sapatos, os fatos de banho, os chapéus, tanto para o sol como para a chuva, pois em outras paragens ninguém sabe o que pode acontecer... e Mulher prevenida vale por duas... Juntar os documentos necessários e convenientes é para mim um verdadeiro ritual.

Até que finalmente lá chega o dia da partida com tudo o que isso implica: levantar cedo, estar a horas no local de embarque, não deixar em casa nada que faça falta, a começar e a acabar nos documentos e medicamentos (pastilhas para combater a malária ou repelente de insectos) e tudo o mais...
E boa viagem....

A pessoa amiga que me acompanha começa então o seu trabalho de me ajudar e me emprestar os seus olhos, como já disse atrás. Não é fácil esta tarefa, mas deve ser feita com prazer e com camaradagem porque a comunhão de interesses e o conhecimento mútuo é que irão ditar muito do que vem a seguir.

Gosto que me descrevam paisagens, objectos decorativos, o movimento dos acontecimentos que se desenrolam por perto e que eu integralmente abarcaria com um simples olhar se visse! Numa palavra, tenho curiosidade e interesse pelo mundo à minha volta.

Conheço as cores pois
vi até aos 16 anos; esta circunstância permite-me ter memória das cores e outras sensações visuais.

Agrada-me que o meu companheiro ou companheira de viagem me leve a tocar nos objectos interessantes que estão perto de mim. Isto tanto se aplica à talha de um altar de uma igreja Barroca como a uma réplica de um antigo barco ou de uma locomotiva, ou a uma estátua que recria o HOMEM DE NIENDERTAL.

Sinto que quando viajo aprendo mais sobre os outros, os que não são do nosso meio nem da nossa nacionalidade; aprendo a conhecer outras Sociedades, outras formas de vida, outros valores, outros hábitos e é este conhecimento do diferente, daquilo que nos é extrínseco que me faz crescer em cidadania. Pois só através do conhecimento de outras culturas e de outros Povos se pode aprender o respeito pelos valores e comportamentos alheios, que afinal são tão legítimos e importantes como os nossos. Viajando tormo-me mais cidadão do Mundo.

Sempre que estou noutro país como as iguarias típicas desses países, pois isto passa também pela experiência de pratos diferentes dos nossos e, mais uma vez tem a ver com a disponibilidade para acolher o que é diferente. Já imaginaram a sensaboria de comer bacalhau no Brasil ou no México?

HÁ MAR E MAR HÁ IR E VOLTAR.

doze dias cá estou de volta ao lar, ao meu, ao nosso país. Com a alma repleta de emoções e a mente de boas recordações, preparo-me a passos largos para retomar a rotina costumeira, o trabalho, os transportes, os cafezinhos quotidianos que quase sempre estão ausentes no estrangeiro onde muito raramente um português encontra um café que mereça esse nome.

O que resta depois de tanta euforia, tanta excitação, tanta correria, tanto sono trocado...?

Fica uma infinidade de coisas boas! Belos passeios, belas paisagens, contactos com pessoas singulares e obviamente muito diferentes de nós.

E... Cá dentro o bichinho da curiosidade, do encanto permanece por aquilo que é diferente e que faz a marca de vida de outras tantas comunidades humanas.

CONCLUSÃO

dou com um presente sem preço, que é este: A capacidade de me encantar, de me interessar pelo mundo à minha volta. A capacidade de nos encantarmos com o mundo e o que dele faz parte é um bem inestimável numa época em que os nossos hábitos se pautam pela passividade, a oferta do “já digerido”, ter curiosidade, ter o prazer da procura e da descoberta, ter vontade de ir ao encontro das coisas e da vida é um privilégio.

Por último deixo aqui expresso o meu agradecimento a todos os meus amigos que já me acompanharam e me vêm ajudando nesta odisseia que é uma mulher cega ter a mania de andar mundo adiante...

Coimbra, 26 de Março de 2007.