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CEGOS VÃO AO TEATRO?

por Manfas Petrónio

CEGOS VÃO AO TEATRO?
CONSIDERAÇÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA CEGUEIRA

Natália Pinarello Rigue
Acadêmica do Curso de Psicologia – ULBRA, Santa Maria, RS
e
& Arnaldo Toni Chagas
Professor Doutor do Curso de Psicologia – ULBRA, Santa Maria, RS

1. INTRODUÇÃO
Considerando as inúmeras concepções criadas em torno do diferente, é notável que a ausência de visão figura-se de modo especial, dentre tantos motivos, pelo excesso desse sentido na apreensão da realidade. Isso gera uma série de representações na sociedade, que variam desde incapacidade dos indivíduos cegos até curiosidade sobre estes.
Desse modo, o intento da presente produção é abordar as representações sociais
sobre a cegueira, a partir de visitas ao teatro. Entendendo que representações sociais consistem na elaboração dos conhecimentos do senso comum com o intuito de explicar o real, cabem alguns questionamentos, abrangidos no decorrer do trabalho: como a cegueira é representada socialmente?
Porque são construídas determinadas representações sobre a cegueira?

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A realização deste trabalho parte da proposta de intervenção em grupo1 numa
associação de cegos e deficientes visuais. O grupo, formado a dois anos e meio,
constitui-se como um espaço de reflexão sobre a vivência da cegueira, fator comum a todos os integrantes, e sobre a instituição que estão inseridos.
A proposta do trabalho surgiu após duas visitas ao teatro da cidade. A primeira, com três pessoas, foi uma visita para conhecer o ambiente do teatro, a segunda, com uma pessoa apenas, foi proposto assistir a uma peça de teatro.
Os que se salientaram foram os
constantes olhares dirigidos aos cegos, tanto dos adultos como das crianças, e as
colocações dos funcionários do teatro: “eles podem entrar, mas não sei como vão
conhecer”; “como é pra eles vir aqui?”
A visita ao teatro, os comentários dos indivíduos cegos sobre as visitas e a experiência com o grupo, permitem abordar algumas representações sociais que envolvem a cegueira.

3. REFERENCIAL TEÓRICO
As teorias das representações sociais (RS), ao se proporem estudar os saberes do senso comum, diferenciam estes do saber científico devido a inúmeros fatores.
Primeiramente, falta consciência em relação a coisas bastante evidentes, apenas
fragmentações preestabelecidas da realidade; segundo, a aceitação sem discussão de alguns fatos; e terceiro, reações aos acontecimentos enquanto comum aos membros da comunidade a que pertencem. Assim, sem instrumentos científicos e a vivência no social, as informações recebidas são desviadas por representações infligidas através de numerosas influências (MOSCOVICI, 2003).
Essas representações possuem duas funções, uma é convencionalizar pessoas,
objetos e acontecimentos. Nas palavras de Moscovici (2003,p. 34) “Elas lhes dão
forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas”. A outra função das representações é que elas são prescritivas, ou seja, se impõem sobre nós com um força invencível, que está pronta antes da criança nascer e não permite ser pensada, apenas re-pensada (MOSCOVICI, 2003).
A partir disso, esse trabalho permite pensar as representações sociais destinadas à cegueira: Como ela é representada? Tendo em consideração que a visão, percebida como primordial, leva a diversas concepções sobre sua ausência, muitas vezes ultrapassando sua real significação (AMIRALIAN, 2007), torna-se importante questionar o seu lugar nesse contexto, qual seja a construção do imaginário social diante da ausência de visão.
Inicialmente, falar sobre deficiência pressupõe anormalidade como negação lógica do normal, acentuando-se o que falta e se apaga, e frente a ótica capitalista seria oposição entre eficiência/ineficiência. Além disso, transpondo o conceito de norma do social para a biologia, vê-se que nesta não existe a dicotomia normal/anormal, sendo que aquele toma a natureza como moral e institui regras e representações sociais (LOBO, 1992).
Amiralian (2007) busca compreender o significado da cegueira através de um resgate histórico, passando por concepções populares e literárias do lugar determinado a pessoas cegas.
Primeiramente, pensar em pessoa cega pode remeter-se a vê-la como sofrida e que vive nas “trevas”, isso porque a cegueira se identifica com fechar os olhos e
com inúmeras dificuldades. Quem nunca pensou no pobre cego pedindo esmola? Por outro lado, existe a visão de cegos com poderes sobrenaturais e com conhecimento que está além das aparências.
Enquanto os saberes supracitados preocupam-se com as consequências da cegueira para a personalidade e assinalam isso como causa de certas características psicológicas, a medicina e educadores, procurando explicação científica na confirmação de causas e consequências, preocupam-se com o quanto a pessoa pode ver. Estes levam em consideração que cego não é aquele que nada enxerga e vive na escuridão total, pois é muito rara a ausência total de percepção visual e, a grande maioria distingue claro de escuro e percebe vultos (AMIRALIAN, 2007).
É essencial citar que a finalidade de todas as representações é tornar familiar algo
não- familiar, com a ressalva de que uma coisa é aceitar e compreender o que é
familiar e crescer acostumado e criar hábitos a partir disso, outra coisa é usar isso como critério para avaliar o que é incomum e anormal. Aqui se encaixa a cegueira enquanto algo nãofamiliar, se opondo a norma da visão, que como cita Moscovici (2003, p. 56) “é a presença real de algo ausente, a ‘exatidão relativa’ de um objeto”.
Os constantes olhares dirigidos aos cegos no teatro, tanto das crianças como dos
adultos, pressupõem atração e intriga, ao mesmo tempo que alarma. Esses parecem estar diante de um outro que não é exatamente como deveria ser, que ameaça a ordem estabelecida (MOSCOVICI, 2003). O que fazer perante isso? Como manejar com essa perturbação que ameaça nosso universo?
Assim o incomum é re-apresentado e incluído em categorias conhecidas, que
possibilitam superar o problema e tornar concreto e quase normal algo abstrato. Esse processo se dá mais pela convenção e memória do que pela razão e, mais por estruturas tradicionais que intelectuais (MOSCOVICI, 2003).
Por esses meios são construídas as representações de cegueira ligada a “treva”, incapacidade, superpoderes, impossibilidade de acessar a realidade, que constituem a forma que os indivíduos cegos são percebidos no social.
Tomando como base as considerações acima, interroga-se: o que fará um cego no teatro? A princípio, para os videntes, a magia do teatro encontra-se no que se pode apreender por meio de imagens, porém porque não entender a cegueira através da utilização de meios não usuais para estabelecer relações com mundo dos objetos, pessoas e coisas? A audição, o tato, o ambiente e as representações construídas pelo indivíduo possibilitam a ida ao teatro.
Entretanto “estamos inconscientemente mergulhados em conceitos estruturados a partir da simbologia da visão e sua antítese, a não-visão” (AMIRALIAN, 2007, p. 17), que dificulta demasiadamente a representação real da cegueira e do indivíduo cego.

4. CONCLUSÃO
Partindo do exposto, conclui-se que a visão entendida como fundamental na
apreensão da realidade, produz inúmeras representações sociais sobre a sua ausência, a cegueira. Na prática isso foi observado através de constantes olhares e dúvidas sobre como o cego poderá conhecer o teatro, confirmando a teoria das representações sociais. Essas são criadas para incluir o anormal, o desconhecido, dentro de uma categoria conhecida. A cegueira parece ser semelhante, mesmo sendo diferente, ser acessível, porém, inacessível (MOSCOVICI, 2003). Daí a necessidade de construir lugares sociais para a cegueira e aceitá-los de modo irrefletido, enquanto relacionada à negatividade, impossibilidade de ir ao teatro e diferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMIRALIAN, M. Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
LOBO, L. Deficiência: convenção, diagnóstico e estigma. In.: RODRIGUES, L. ; LEITÃO, M. ; BARROS, R. (orgs.) Grupos e instituições em análise. Rio de janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Trad. Pedrinho Guareschi. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.