Cães-guia: confiar cegamente os passos a amigos de quatro patas
por Mariana de Araújo Barbosa, Publicado em 17 de Fevereiro de 2010 |
São os olhos dos donos. Humanizam-nos. O i foi conhecer a única escola
de cães para cegos em Portugal
Nuno está sentado ao topo da mesa do restaurante, os olhos baços e
claros postos no prato. Inclina-se para a esquerda e segreda qualquer
coisa ao ouvido do Noddy. "Calma, está tudo bem", sussurra.
Noddy é um cão-guia. Faz hoje dois anos que o labrador bege e o
informático se tornaram "companheiros do dia-a-dia". A 17 de Fevereiro
de 2008, "estava ansioso para conhecer o cão e para saber como era
trabalhar com um ser vivo. Estava nervoso, não sabia como brincar com
ele". Mas num instante, as dúvidas desapareceram. "Achei o Noddy um cão
simpático, alegre. Mas não demasiado alegre. Tal como eu", confessa.
"Se eu tenho um cão lento, e um cego de andamento médio-rápido, a dupla
nunca irá conseguir cumprir-se. E se a dupla não estiver feliz, não
resulta", explica Vítor Costa, educador de cães-guia desde o "dia zero"
da escola de Mortágua. A "dupla" foi um conceito criado para a escola
contar com o apoio da Segurança Social, logo no processo de fundação.
"Foi feito um acordo atípico com a Segurança Social, baseado em duplas
cego-cão. Não podiam subsidiar cães. Em termos práticos, sempre que um
cão é entregue, é formada uma dupla", esclarece o presidente da direcção
da escola, João Pedro Fonseca. O educador complementa. "A dupla só está
formada passados seis meses. O cão perde muito conhecimento para
colocar-se numa nova realidade", acrescenta Vítor. Mas o processo é
recíproco.
*Aprender com os erros* "É como na faculdade, muita teoria. Aprendemos
depois, no terreno", explica Vítor. A base da confiança entre as duplas
não é imediata. É fundamental. "Constrói-se através dos erros
apresentados e solucionados. Por exemplo, um cão vai no passeio mas
desvia-se para a estrada. O cego insiste em continuar. Se o cão tem
razão em evitar o percurso, o cego passa a confiar nele. Cria-se uma
dupla interdependente", sublinha. Por isso, Vítor propõe um teste:
deixar o Noddy com ele - educador do cão-guia - enquanto Nuno fica do
outro lado da porta. "Quando me viu, o Noddy fez uma grande festa. Mas
se fica longe do companheiro, cola-se à porta e chora. Cria-se uma
dependência monstruosa", descreve.
Noddy está de regresso - com Nuno - à escola de Mortágua, distrito de
Viseu, para uma "reciclagem". Durante uma semana o educador vai tentar
perceber por que razão o cão andava nervoso e ansioso. "O cão não diz
que está a ter um desvio comportamental, mas o dono percebe. Estamos a
tratar do problema", conta ao /i/.
O pedido do Nuno à escola de cães-guia surgiu depois de um "acidente
grave". Há dois anos, o informático ganhou um companheiro. "As
referências com a bengala são específicas, e no início andamos um bocado
à toa. Não é fácil alterar a nossa maneira de agir. Mas correu tudo
bem", recorda Nuno. Vítor sublinha que as primeiras recomendações da
escola após a entrega de um cão-guia a um cego são de "manter o mapa
mental". A confiança constrói-se "por patamares", sublinha. "O lado
prático, que se sente, é não cair, fugir aos obstáculos. Friamente, o
cão é um meio de locomoção. Permite independência, autonomia, segurança
e integridade física nos percursos", analisa o educador. E preparar um
cão para esse papel não é tarefa simples.
Em média, são educados todos os anos 40 cães labrador - raça com boa
capacidade de trabalho, de esforço e com uma fidelidade incontornável ao
homem - na escola de Mortágua, mas só 12 são entregues a cegos e passam
a guiar-lhes os passos. A entrega é feita quando o cachorro tem
aproximadamente dois anos. Daí tratar-se de um processo tão moroso. A
formação custa entre 17 e 18 mil euros por cão, sendo os custos
assegurados em 60% pela Segurança Social. O restante vem de acções de
solidariedade social e apadrinhamentos.
"Há escolas que apadrinham os nossos cães e promovem actividades para
cobrirem os custos de educação, alimentação e saúde. Os cães são
gratuitos para os cegos", explica o director. João Pedro Fonseca não
esconde, contudo, o desejo de crescer. "Foi precisamente pelas
necessidades que começámos a pensar a escola. Mas o grande problema é
responder às necessidades. Os cães são a matéria-prima para chegar ao
objectivo, que é a pessoa cega. A primeira cadela - a Camila - foi
entregue em 1999. Começámos com oito. Agora são 12 a 14 cães por ano",
esclarece.
**
*Humanizar os homens* "O cão-guia tem um papel preponderante a percorrer
os trajectos diários. Como é que o ensino? Incentivando-o a trabalhar,
dando estímulos na trela", conta Nuno. O discurso parece o mesmo de
Vítor. É quase. "Como mostro a um cão que, geneticamente tem escrito
"pombas é para comer", que não pode fazê-lo? Trabalhando a paciência.
Repetindo gestos. Mostrando que é algo que ele deseja, mas que tem que
se controlar e procurar outro incentivo que compense aquele", explica.
Por isso, às predisposições genéticas intrínsecas "controladas pela
escolha da fêmea e do macho", junta-se o processo de sociabilização, em
famílias de acolhimento. Depois de nascerem na escola, os "pupilos",
como lhes chama Vítor, vão viver um ano com famílias "escolhidas pela
escola".
Em casas "normais", os cães vão aprender a ter regras, como não mexer no
caixote do lixo ou não subir para o sofá. "É na família que o cachorro
vai suportar os puxões das crianças, as brincadeiras que o tornam um cão
mais afável, mais meigo, mais predisposto. É lá que vai criar um relógio
biológico, habituar-se ao barulho das motas, das sirenes, da ambulância,
do carro, do camião. E a família vai estar preparada para reagir, dar
formação a esse cachorro. Sociabilizá-lo. Humanizá-lo". Vítor considera
esta uma fase preponderante na educação do cão-guia. E é dessa
humanização que nasce também a humanização da pessoa. Do cego. "Deixei
de ser o coitadinho com a bengala", conta Nuno.
Vítor complementa: "Além do mal de serem portadoras de uma deficiência,
são normalmente pessoas excessivamente do mundo delas. Excessivamente
recatadas, não no sentido de senhoras do seu nariz, mas no sentido de
não eram abertas à novidade. O cão proporciona-lhes conhecer pessoas,
tomar contacto com novas realidades. Mostra-lhes o outro lado". Numa
simples viagem de comboio entre a estação de Barcarena e do Oriente, em
Lisboa, a bengala condicionava o comportamento de Nuno, que era de total
silêncio. "Quase que apostava que ele não dizia nada a ninguém. Com o
Noddy, basta alguém comentar 'que cão lindo que você leva aí', e ele
responde", garante Vítor Costa.
Nuno confessa já não conceber o mundo de outra forma. "Quando saio sem o
Noddy parece que me falta alguma coisa". O cão e ele são uma dupla.
Aquela equipa cúmplice, desejada. Além do objectivo frio de o cão ser "o
meio de locomoção do cego". Vítor Costa remata: "O lado prático permite
independência, autonomia, segurança e integridade física nos percursos.
O lado afectivo, é ser os olhos dele. É ganhar olhos. Obstáculos
aprofundam mais a deficiência. O cão são uns olhos grandes, grandes, que
lhe proporcionam levar uma vida com mais naturalidade."
Fonte: Jornal i
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