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Lua Azul - blog de lua azul

Viajando pelo mundo dos livros... "O Aprendiz do Mago" de Joseph Delaney - Capítulo 12

por lua azul

Se no outro dia era o fator mistério do pequeno livrinho quue ando a tentar escrever a ser-vos por aqui disponibilizado quase em primeira mão pois foram das primeiras pessoas a ter acesso a ele muito antes da minha própria família, hoje é na obra que nestes últimos tempos tenho vindo a partilhar convosco que todos os mistérios parecem ter saltado à flor da pele se é que assim se pode falar. Afinal de contas em que outra personagem terá encarnado a Mãe Malquin para poder atacar Thom? Terá sido na menina dos sapatos bicudos que por sinal era sua familiar ou no irmão mais velho do nosso amiguinho? Também pode ter Sido em Helie, a cunhada de Thom como tudo nos levará a crer que talvez possa mesmo ter acontecido e já irão constatar isso mesmo a seguir ou então na bebé que esta deu à luz precisamente na mesma noite em que Mãe Malquin acabara por morrer! Para podermos descobrir que grandes segredos se escondem ainda por de trás de todo este mistério, teremos então que continuar a acompanhar a história até ao seu final, sendo que hoje deixo-vos então o 12º capítulo e assim que me for possível, vou continuar a disponibilizar os seguintes até que descubramos enfim em quem é que encarnou a Mãe Malquin e que consequências é que isso trará para a vida de Thom após o ataque desta alma em desespero que sonha poder vingar-se dele após terem guerreado ambos junto da margem do rio, algures no capítulo 9 deste livrinho.

CAPÍTULO 12
OS DESESPERADOS E OS
DESEQUILIBRADOS

Ao descermos a colina em direção à fazenda, os chuviscos quentes batiam-nos no rosto.
Em algum lugar ao longe um cão ladrou duas vezes, mas abaixo de nós estava tudo silencioso e
imóvel.
A tarde ia avançada e sabia que o meu pai e Jack estariam nos campos, o que me permitiria
conversar a sós com a minha mãe. Fora fácil para o Mago dizer-me que levasse Alice, mas a
viagem dera-me tempo para pensar e não sabia como a minha mãe iria encarar a situação. Não me
parecia que lhe agradasse ter alguém como Alice em casa, especialmente depois de eu lhe contar o
que ela fizera. E quanto a Jack, conseguia imaginar qual seria a sua reação. Pelo que Ellie me
relatara da última vez a respeito da atitude dele em relação à minha nova ocupação, ter em casa a
sobrinha de uma bruxa era a última coisa que ele haveria de querer.
Quando atravessamos o pátio apontei para o celeiro. — É melhor se abrigar ali debaixo —
disse. — Vou entrar e explicar.
Mal proferi estas palavras, veio da direção da casa da fazenda o choro sonoro de um bebê
com fome. Os olhos de Alice cruzaram-se fugazmente com os meus, depois baixou-os e recordei
a última vez que tínhamos estado juntos e uma criança chorara.
Sem uma palavra, Alice virou-se e encaminhou-se para o celeiro em silêncio, tal como eu
esperara. Seria de pensar que, depois de tudo o que acontecera, houvéssemos conversado muito
durante a viagem, mas, na realidade, mal havíamos trocado uma palavra. Calculo que tivesse
ficado afetada pela forma como o Mago lhe agarrara o queixo e cheirara o hálito. Talvez a tivesse
feito pensar em todos os seus atos no passado. O que quer que fosse, a maior parte da viagem ela
parecera absorta em pensamentos e muito triste.
Acho que deveria ter me esforçado mais, mas estava esgotado demais e cansado, por isso
caminhamos em silêncio até que se tornou um hábito. Foi um erro. Devia ter-me esforçado então
por ficar conhecendo melhor Alice — quantos problemas não teria evitado mais tarde!
Quando abri com força a porta de trás, o choro cessou e ouvi outro som: o estalido
reconfortante da cadeira de balanço da minha mãe.
A cadeira estava junto à janela, mas as cortinas não se encontravam corridas na totalidade e
percebi pela cara dela que estivera a espreitar pela fresta entre elas. Vira-nos chegar ao pátio e,
quando entrei na divisão, começou a balançar a cadeira cada vez mais depressa, fitando-me o
tempo todo sem pestanejar, uma metade do seu rosto no escuro, a outra iluminada pela vela
enorme que tremulava no castiçal grande, de latão, no centro da mesa.
— Quando traz contigo uma pessoa, é sinal de boa educação convidá-la a entrar em casa
— disse ela, a sua voz um misto de contrariedade e surpresa. — Julguei que lhe tivesse ensinado
melhores modos.
— Mr. Gregory mandou-me trazê-la aqui — respondi. — O nome dela é Alice, mas tem
andado em más companhias. Ele quer que a mãe tenha uma conversa com ela, mas achei por bem
contar-lhe primeiro o que aconteceu, para o caso de não a querer convidar a entrar.
Puxei então de uma cadeira e contei à minha mãe exatamente o que sucedera. Quando
terminei, ela soltou um longo suspiro, depois um tênue sorriso suavizou as suas feições.

— Fez bem, filho — disse-me. — É jovem e novo no ofício, por isso os seus erros podem
ser perdoados. Vá lá buscar a pobre menina, depois deixe-nos a sós para conversarmos. Se quiser
pode ir lá em cima cumprimentar a sua nova sobrinha. Ellie irá certamente gostar de te ver.
Fui então buscar Alice, deixei-a com a minha mãe e subi as escadas.
Ellie estava no quarto maior. Pertencera aos meus pais, mas tinham-no cedido a ela e a Jack
porque havia espaço para mais duas camas e um berço, o que seria útil à medida que a família
deles fosse crescendo.
Bati de mansinho à porta, que estava meio aberta, mas só entrei no quarto depois de Ellie o
permitir. Estava sentada na beira da cama grande de casal a amamentar a bebê, a sua cabeça meio
escondida pelo xale cor-de-rosa. Mal me viu, a boca alargou-se num sorriso que me fez sentir
bem-vindo, mas parecia cansada e tinha o cabelo escorrido e oleoso. Apesar de eu ter desviado
rapidamente o olhar, Ellie era perspicaz e percebi que me vira fitá-la e entendera a expressão no
meu rosto, porque afastou rapidamente o cabelo dos olhos.
— Oh, desculpa, Tom — disse. — Devo estar medonha... estive de pé a noite toda. Devo
ter dormido apenas uma hora. Temos de aproveitar as oportunidades com uma bebê tão
esfomeada como esta. Ela chora muito, especialmente de noite.
— Quanto tempo tem? — perguntei.
— Fará seis dias esta noite. Nasceu no sábado passado, pouco depois da meia-noite.
Fora na altura em que eu matara a Mãe Malkin. Durante um momento, a lembrança voltou
rapidamente e um arrepio percorreu-me a espinha.
— Olha, ela já acabou de mamar — disse Ellie com um sorriso. — Gostaria de lhe pegar?
Era a última coisa que eu queria fazer. A bebê era tão pequena e delicada que tive medo de
apertá-la com força demais e não gostava da maneira como a cabeça dela pendia tanto. Não tive
coragem de recusar, porque Ellie ficaria com certeza ofendida. Mas não segurei na bebê muito
tempo dado que, mal chegou aos meus braços, o seu rostinho ficou vermelho e ela começou a
chorar.
— Acho que esta coisa não gosta de mim — disse a Ellie.
— É ela e não esta coisa — admoestou-me Ellie, pondo uma expressão austera e ultrajada.
— Não se preocupe, o problema não é você, Tom — explicou, a sua boca suavizando-se num
sorriso. — Acho que ela ainda está com fome, é tudo.
A bebê parou de chorar mal Ellie lhe pegou e depois daquilo não fiquei muito mais tempo.
Então, quando ia a descer, chegou-me da cozinha um som inesperado.
Eram gargalhadas, o riso sonoro e caloroso de duas pessoas que se dão muito bem. No
momento em que abri a porta e entrei, o rosto de Alice ficou muito sério, mas a minha mãe
continuou a rir alto durante mais alguns instantes e, mesmo quando parou, o seu rosto continuou
iluminado por um amplo sorriso. Tinham partilhado uma piada, uma piada muito engraçada, mas
não quis perguntar o que era e elas não me disseram. A expressão nos olhos de ambas deu-me a
sensação de se tratar de algo privado.
Uma vez, o meu pai disse-me que as mulheres sabem coisas que os homens ignoram. Que
às vezes têm uma certa expressão no olhar, mas, quando a vemos, nunca devemos perguntar-lhes
no que estavam a pensar. Se o fizermos, podemos acabar por ouvir algo que não queremos. Bem,
o fato de estarem a rir aproximara-as, sem dúvida, mais; a partir daquele momento parecia que já
se conheciam há anos. O Mago tivera razão. Se alguém era capaz de lidar com Alice, só podia ser
a minha mãe.
No entanto, reparei em algo. A minha mãe dera a Alice o quarto em frente do dela e do
meu pai. Eram os dois quartos no alto do primeiro lance de escadas. A minha mãe tinha o ouvido

muito apurado e isso queria dizer que se Alice se virasse durante o sono, ela ouviria.
Por conseguinte, apesar daquelas gargalhadas, a minha mãe não deixaria de ficar atenta a
Alice.
Quando voltou dos campos, Jack deitou-me um olhar muito carrancudo e murmurou algo
entre dentes. Parecia furioso com alguma coisa. Mas o meu pai ficou satisfeito por me ver e, para
minha surpresa, apertou-me a mão. Fazia-o sempre que cumprimentava os meus outros irmãos
que tinham saído de casa, mas esta era a primeira vez, para mim. Senti-me triste e orgulhoso ao
mesmo tempo. Estava a tratar-me como se eu fosse um homem que seguia o seu próprio
caminho na vida.
Jack não estava em casa nem há cinco minutos quando veio à minha procura.
— Lá para fora — disse, mantendo a voz baixa para que mais ninguém pudesse ouvir. —
Quero falar com você.
Saímos para o pátio e ele seguiu à frente, contornando o celeiro até perto do chiqueiro, de
onde não seríamos vistos da casa.
— Quem é a menina que trouxe com você?
— O nome dela é Alice. É apenas alguém que precisa de ajuda — respondi. — O Mago
pediu-me que a trouxesse até aqui para a minha mãe poder conversar com ela.
— O que vem a ser isso de ela precisar de ajuda?
— Tem andado com más companhias, é tudo.
— Que tipo de más companhias?
Sabia que não lhe iria agradar, mas não tinha outra alternativa. Fui obrigado a contar-lhe.
Caso contrário, ele iria perguntar à mãe.
— A tia dela era uma bruxa, mas não se preocupe, o Mago tratou de tudo e só vamos ficar
alguns dias.
Jack explodiu. Nunca o vira tão furioso.
— Onde está o bom senso com que nasceu? — gritou. — Não pensa? Não pensou na
bebê? Há uma criança inocente a viver nesta casa e traz para cá alguém de uma família dessas! É
inacreditável!
Levantou o punho e pensei que me fosse bater. Mas, ao invés, deu um murro na parede do
celeiro, a pancada súbita semeando a agitação entre os porcos.
— A mãe acha que não há problema — protestei.
— Sim, seria de esperá-lo da mãe — redarguiu Jack, a sua voz subitamente mais baixa, mas
ainda cheia de raiva. — Como poderia ela recusar algo ao seu filho preferido? E ela tem um
coração generoso demais, como você muito bem sabe. Por isso, não devia se aproveitar. Olhe,
terá de se ver comigo se acontecer alguma coisa. Não gosto do ar daquela menina. Parece-me
manhosa. Vou estar muito atento a ela e se pisar nem que seja uma só vez o risco, vão ambos
daqui para fora em menos de um segundo. E terão de valer o que comem. Ela pode ajudar nas
tarefas domésticas para facilitar a vida da mãe e você colaborar no trabalho da fazenda.
Jack virou-se e começou a afastar-se, mas ainda tinha algo mais a dizer. — Estando tão
ocupado com coisas mais importantes — acrescentou, cheio de sarcasmo —, é capaz de não ter
reparado que o pai anda com um ar muito cansado. Ele tem cada vez mais dificuldade em
trabalhar.
— Claro que ajudarei — gritei-lhe —, e Alice também.
À ceia, para além da minha mãe, estiveram todos muito calados. Acho que era a presença
de uma estranha à nossa mesa. Apesar de a educação de Jack obstar a que falasse sem rodeios,
olhou para Alice de uma forma quase tão carrancuda como para mim. Por isso, felizmente a

minha mãe esteve bem-disposta e esforçou-se por animar todos à mesa.
Ellie teve de interromper duas vezes a ceia para atender à bebê, que não parou de chorar a
ponto de deitar a casa abaixo. Da segunda vez trouxe-a para baixo.
— Nunca conheci um bebê que chorasse tanto — comentou a minha mãe com um sorriso.
— Pelo menos tem pulmões fortes e saudáveis.
O seu rosto minúsculo estava outra vez todo vermelho e franzido. Nunca o teria dito a
Ellie, mas não era um bebê muito bonito. O seu rosto fazia-me lembrar o de uma velha
rezingona. Tão depressa chorava a ponto de rebentar, como depois, de um momento para o
outro, se calava e ficava sossegada. Tinha os olhos muito arregalados e olhava fixamente na
direção do centro da mesa, onde Alice estava sentada perto do enorme castiçal de latão. A
princípio, não soube o que pensar daquilo. Julguei que a bebê de Ellie estivesse apenas fascinada
pela chama da vela. Mas depois, Alice ajudou a minha mãe a levantar a mesa e, de cada vez que
Alice passava próximo, a bebê seguia-a com os seus olhos azuis e, de repente, apesar de a cozinha
estar aquecida, senti um arrepio.
Mais tarde, fui até o meu antigo quarto e, quando me sentei na cadeira de vime junto à
janela e contemplei a paisagem, foi como se nunca tivesse saído de casa.
Quando olhei para norte, na direção da Colina do Carrasco, pensei no interesse que a bebê
parecera demonstrar por Alice. Quando me lembrei do que Ellie dissera antes, voltei a sentir um
arrepio. A bebê dela nascera depois da meia-noite, mesmo na altura da Lua cheia. Era demasiado
próximo para ser coincidência. Mãe Malkin teria sido levada pelo rio mais ou menos no momento
em que a bebê de Ellie nascera. O Mago avisara-me de que ela haveria de voltar. E se ela tivesse
voltado ainda mais cedo do que ele previra? Contara que ela ficasse latente. E se estivesse
enganado? E se ela se libertara dos ossos e o seu espírito possuíra a bebê de Ellie no preciso
momento do seu nascimento?
Não preguei os olhos naquela noite. Só havia uma pessoa a quem podia expor os meus
receios e essa pessoa era a minha mãe. A dificuldade estava em apanhá-la sozinha sem despertar a
atenção para o fato de o estar fazendo.
A minha mãe cozinhava e efetuava outras tarefas que a mantinham ocupada a maior parte
do dia e normalmente não teria sido problemático falar com ela na cozinha porque eu estava a
trabalhar ali perto. Jack encarregara-me de reparar a fachada do celeiro e devo ter cravado
centenas de novos pregos reluzentes antes do pôr do Sol.
Porém, a dificuldade era Alice. A minha mãe conservava-a na sua companhia o dia inteiro,
obrigando realmente a meniba a trabalhar arduamente. Podia ver-se o suor na testa dela e as
rugas que a sulcavam constantemente, mas, apesar disso, nem uma só vez Alice se queixou.
Só depois da ceia, quando acabou o barulho do lavar e limpar da louça, é que tive
finalmente a minha oportunidade. Naquela manhã, o meu pai fora ao mercado da Primavera, em
Topley. Para além de efetuar os seus negócios, dava-lhe a rara oportunidade de encontrar alguns
dos seus velhos amigos, pelo que estaria ausente dois ou três dias. Jack tinha razão. Ele parecia
cansado e sempre lhe proporcionava um descanso da fazenda.
A minha mãe mandara Alice ir repousar no quarto, Jack estava na sala da frente e Ellie
encontrava-se lá em cima a tentar fechar os olhos durante meia hora antes da bebê acordar de
novo para mamar. Por isso, não perdendo qualquer tempo, comecei a contar à mãe o que me
preocupava. Ela estivera balançando a cadeira, mas mal conseguira proferir a primeira frase
quando a cadeira parou. Escutou com muita atenção enquanto lhe expunha os meus receios e
razões para desconfiar da bebê. Mas o rosto dela permaneceu tão impassível e calmo que não
fazia idéia o que lhe ia na mente. Assim que despejei a última palavra, ela pôs-se em pé.

— Espere aí — disse-me. — Precisamos resolver isto de uma vez por todas.
Saiu da cozinha e foi lá acima. Quando voltou, trazia a bebê, embrulhada no xale de Ellie.
— Vai buscar a vela — disse, avançando para a porta.
Fomos até ao pátio, a minha mãe caminhando depressa, como se soubesse exatamente onde
ia e o que tencionava fazer. Acabamos por nos deter do outro lado da pilha de estrume, ficando
em cima da lama à beira do nosso lago, que era suficientemente fundo e grande para abastecer de
água as nossas vacas, mesmo durante os meses mais secos de Verão.
— Mantenha a vela bem alto para podermos ver tudo — disse a minha mãe. — Não quero
que haja dúvidas.
Então, para meu horror, ela estendeu os braços e segurou a bebê sobre a água escura e
parada. — Se ela flutuar, a bruxa está dentro dela — afirmou a minha mãe. — Se se afundar, está
inocente. Bem, vamos ver...
— Não! — gritei, a minha boca abrindo-se sozinha e as palavras brotando mais depressa
do que o meu pensamento. — Não faça isso, por favor. É a bebê de Ellie.
Por um momento, pensei que ela fosse deixar cair a bebê mesmo assim, depois sorriu,
estreitou-a novamente e beijou-lhe muito delicadamente a testa. — Claro que é a bebê de Ellie,
filho. Não vê isso só de olhar para ela? De qualquer forma, a “flutuação” é um teste feito pelos
tolos e nem sequer resulta. Normalmente, amarram as mãos aos pés da pobre mulher e atiram-na
para águas profundas e tranquilas. Mas se ela se afunda ou flutua, é uma questão de sorte e
depende do seu tipo de corpo. Não tem nada a ver com bruxaria.
— E então a maneira como a bebe olhava constantemente para Alice? — perguntei.
A minha mãe sorriu e abanou a cabeça. — Os olhos de um recém-nascido não conseguem
focar convenientemente — explicou. — Provavelmente era apenas a luz da vela que lhe
despertava a atenção. Não se esqueça — Alice estava sentada perto dela. Depois, de cada vez que
Alice se deslocava, os olhos da bebê eram atraídos pela mudança na luz. Não se preocupe.
— E se a bebê de Ellie estiver possuída de alguma maneira? — indaguei. — E se houver
algo dentro dela que nós não conseguimos ver?
— Olha, filho, tenho trazido tanto bem como mal a este mundo e conheço o mal só de
olhar para ele. Esta criança é boa e não existe nada de preocupante dentro dela. Nada de nada.
— No entanto, não é estranho que a bebê de Ellie tenha nascido mais ou menos na mesma
altura em que Mãe Malkin morreu?
— Nem por isso — respondeu a minha mãe. — E mesmo assim. Por vezes, quando algo
mau deixa o mundo, algo bom entra no seu lugar. Já vi acontecer isso antes.
Claro, percebi então de que a minha mãe nunca pensara sequer em largar a bebê e que
estivera apenas a tentar incutir algum juízo em mim, mas quando regressamos atravessando o
pátio, os meus joelhos ainda tremiam só de pensar naquilo. Foi então, quando chegamos à porta
da cozinha, que me lembrei de algo.
— Mr. Gregory deu-me um pequeno livro com tudo sobre a possessão — disse eu. —
Mandou-me lê-lo com muita atenção, mas o problema é que está escrito em latim e até agora só
tive três lições.
— Não é a minha língua preferida — comentou a minha mãe, parando junto à porta. —
Verei o que posso fazer, mas terá de ficar para quando eu voltar, conto ser chamada esta noite.
Entretanto, porque não pede a Alice? Talvez ela possa ajudar.
A minha mãe acertara quando dissera que a iam chamar. Veio uma carroça buscá-la pouco
depois da meia-noite, os cavalos todos suados. Parecia que a mulher do agricultor estava
passando um bocado realmente mau e já se encontrava em trabalho de parto há mais de um dia e

uma noite. Era também muito longe, quase trinta e dois quilômetros para sul. Isso queria dizer
que a minha mãe estaria ausente dois ou mais dias.
Na verdade, eu não queria pedir a Alice que me ajudasse no latim. Sabem, tinha a certeza
de que o Mago não iria concordar. Afinal, era um livro da biblioteca dele e não lhe agradaria
sequer a idéia de Alice lhe tocar. Mas, que outra alternativa tinha? Desde que viera para casa,
pensava cada vez mais em Mãe Malkin e não conseguia tirá-la da mente. Era apenas um instinto,
uma impressão, mas achava que ela estava em algum lugar no escuro e se aproximava mais a cada
noite que passava.
Então, na noite seguinte, depois de Jack e Ellie terem ido para a cama, bati suavemente à
porta do quarto de Alice. Não era algo que lhe fosse pedir durante o dia, porque ela estava
sempre atarefada, e se Ellie ou Jack escutassem, não iriam gostar. Especialmente com a aversão de
Jack ao ofício de Mago.
Tive de bater duas vezes antes de Alice abrir a porta. Estava com receio de que ela pudesse
encontrar-se já a dormir, mas ainda não se despira e não consegui evitar que os meus olhos
descessem até aos seus sapatos bicudos. Havia uma vela colocada no toucador, perto do espelho.
Acabara de ser apagada — ainda fumegava.
— Posso entrar? — perguntei, levantando a minha própria vela para que lhe iluminasse o
rosto de cima. — Queria pedir-te uma coisa.
Alice fez-me sinal para que entrasse e fechou a porta
— Preciso ler um livro, mas está escrito em latim. A minha mãe disse que me podia ajudar.
— Onde está? — perguntou Alice.
— No meu bolso. É um livro pequeno. Para uma pessoa que sabe latim, não deverá levar
muito tempo a lê-lo.
Alice soltou um suspiro profundo e cansado. — Já tenho muito que fazer — queixou-se.
— Do que trata?
— Possessão. Mr. Gregory acha que Mãe Malkin pode voltar para me apanhar e que se
servirá da possessão.
— Mostre-me — pediu, estendendo a mão. Coloquei a minha vela ao lado da dela, depois
enfiei a mão nas calças e retirei o pequeno livro. Ela folheou-o sem dizer uma palavra.
— Consegue lê-lo? — inquiri.
— Não vejo porque não. Lizzie ensinou-me e ela sabe latim de trás para a frente.
— Sempre vai me ajudar?
Ela não respondeu. Aproximou antes o livro bastante do rosto e cheirou-o ruidosamente.
— Tem certeza de que é bom? — indagou. — Foi escrito por um padre e normalmente eles não
sabem lá muito.
— Mr. Gregory chamou-lhe “obra decisiva” — disse eu —, o que significa que é o melhor
livro alguma vez escrito sobre o assunto.
Ela levantou então os olhos do livro e, para surpresa minha, vi que transbordavam de raiva.
— Sei o que significa decisiva — respondeu. — Acaso acha que sou estúpida? Olha que estudei
durante anos, ao passo que você só agora começou. Lizzie tinha muitos livros, mas agora estão
todos queimados. Pegaram fogo.
Balbuciei que lamentava e ela sorriu-me.
— O problema é que — disse ela, a sua voz suavizando-se de repente — vai levar tempo a
lê-lo e, neste momento, estou cansada demais. Amanhã a sua minha mãe ainda estará fora e eu
não terei mãos a medir com o trabalho. A sua cunhada prometeu ajudar, mas ela está muito
ocupada com a bebê e levarei quase todo o dia a cozinhar e limpar. Mas se você me desse uma

ajuda...
Não soube o que dizer. Ia ajudar Jack, pelo que não me sobraria muito tempo. O problema
era que os homens nunca cozinhavam nem limpavam e não era assim apenas na nossa fazenda.
Era o mesmo em todo o Condado. Os homens trabalhavam no exterior fizesse chuva ou sol e,
quando regressavam, as mulheres tinham uma refeição quente em cima da mesa. A única ocasião
em que ajudávamos na cozinha era no Dia de Natal, altura em que lavávamos a louça como
presente especial para a minha mãe.
Foi como se Alice me lesse o pensamento, porque o seu sorriso alargou-se. — Não seria
muito difícil, não é? — perguntou. — As mulheres dão comida às galinhas e ajudam na colheita.
Assim sendo, porque não haveriam os homens de ajudar na cozinha? Basta que me ajude a lavar a
louça, é tudo. E alguns tachos precisam de ser areados antes de eu começar a cozinhar.
Concordei então em fazer o que ela queria. Tinha outra escolha? Só esperava que Jack não
me apanhasse em flagrante. Nunca iria entender.
Levantei-me mais cedo do que o costume e consegui arear os tachos antes de Jack descer. A
seguir, tomei o desjejum demoradamente, comendo muito devagar, o que era invulgar em mim e
foi o suficiente para suscitar um olhar desconfiado de Jack. Depois de ele ir para os campos, lavei
rapidamente os tachos e comecei a limpá-los. Devia ter calculado o que iria acontecer, pois Jack
nunca tivera muita paciência.
Entrou no pátio bradando e praguejando e me viu através da janela, o seu rosto todo
franzido de incredulidade. Depois cuspiu para o pátio e deu a volta e escancarou a porta da
cozinha com um empurrão.
— Quando estiver despachado — disse sarcasticamente —, há trabalho de homens para
fazer. E pode começar por inspecionar e reparar os chiqueiros. Snout {8} vem amanhã. Há que
matar cinco animais e não queremos passar o tempo todo correndo atrás dos desgarrados.
Snout era a nossa alcunha para o matador dos porcos, e Jack tinha razão. Às vezes, os
porcos entravam em pânico quando Snout metia mãos à obra e se houvesse qualquer ponto fraco
na vedação, eles encontravam-no com certeza.
Jack virou-se para se ir embora e depois, subitamente, praguejou alto e bom som. Fui até à
porta ver o que era. Ele pisara sem querer um grande sapo gordo, transformando-o em polpa.
Diziam que dava azar matar uma rã ou um sapo e Jack voltou a praguejar, carregando tanto o
cenho que os seus espessos sobrancelhas pretos se uniram ao meio. Atirou o sapo morto com um
pontapé para a pia de despejos e afastou-se, abanando a cabeça. Não soube que bicho lhe
mordera. Jack não costumava ser tão mal-humorado.
Fiquei onde estava e limpei rapidamente o último tacho — já que ele me apanhara em
flagrante, podia perfeitamente concluir a tarefa. Além disso, os porcos cheiravam mal e não estava
muito ansioso por efetuar a tarefa que Jack me destinara.
— Não se esqueça do livro — recordei a Alice quando abri a porta para sair, mas ela
limitou-se a sorrir-me de forma estranha.
Só consegui voltar a falar com Alice ao final daquele dia, depois de Jack e Ellie se terem
recolhido. Tinha pensado ir fazer-lhe nova visita ao quarto, mas ela desceu antes à cozinha,
trazendo o livro e sentando-se na cadeira de balanço da minha mãe, perto das brasas da lareira.
— Tratou muito bem aqueles tachos. Deve estar desesperado por saber o que está aqui —
comentou Alice, batendo na lombada do livro.
— Se ela voltar, quero estar preparado. Preciso saber o que posso fazer. O Mago disse que
provavelmente ela estará latente. Sabe o que é?
Os olhos de Alice arregalaram-se e anuiu.

— Portanto, tenho de estar preparado. Se houver algo nesse livro que possa ajudar, preciso
saber.
— Este padre não é como os outros — comentou Alice, estendendo-me o livro. —
Percebe do assunto, sim. Lizzie gostaria mais disto do que de bolos à meia-noite.
Enfiei o livro nas calças e puxei um escabelo para o outro lado da lareira, de frente para o
que restava da fogueira. Depois, comecei a interrogar Alice. De início, foi uma tarefa muito
difícil. Ela não adiantou muito e o que consegui arrancar-lhe fez-me sentir muito pior.
Comecei pelo estranho título do livro: Os Malditos, os Desequilibrados e os Desesperados. O que
significava? Porquê dar semelhante nome ao livro?
— A primeira palavra não passa de conversa de padre — disse Alice, descaindo os cantos
da boca em reprovação. — Eles aplicam essa palavra às pessoas que fazem as coisas de maneira
diferente. As pessoas como a sua mãe, que não vão à igreja nem dizem as preces certas. As
pessoas que não são como eles, às pessoas que são canhotas — rematou, sorrindo-me com ar
entendido.
— A segunda palavra é mais útil — continuou Alice. — Um corpo possuído recentemente
tem pouco equilíbrio. Está sempre a cair. Leva algum tempo, sabe, até o possessor que lá se
instalou ficar confortavelmente adaptado ao seu novo corpo. É o mesmo que tentar calçar um
par de sapatos novos. Deixa-o também mal-humorado. Uma pessoa calma e plácida pode atacar
sem aviso. Logo, é outra maneira de o distinguir.
— Depois, quanto à terceira palavra, essa é fácil. Uma bruxa que já teve um corpo humano
saudável está desesperada por arranjar outro. Então, mal o consegue, fica desesperada por o
conservar. Não vai desistir dele sem lutar. Fará tudo. Seja o que for. Por isso os possessos são tão
perigosos.
— Se ela voltasse, o que seria? — perguntei. — Se ela estivesse latente, quem tentaria
possuir? Seria eu? Tentaria fazer-me mal dessa maneira?
— O faria, se pudesse — disse Alice. — No entanto, não é fácil, sendo você o que é.
Também poderia me usar, mas não vou lhe dar a oportunidade. Não, ela escolherá os mais fracos.
Os mais fáceis.
— A bebê de Ellie?
— Não, essa não lhe serviria de nada. Teria de esperar que crescesse. Mãe Malkin nunca
teve muita paciência e estar presa naquele poço na propriedade do Velho Gregory só a terá
tornado pior. Se for a você que ela queira fazer mal, primeiro arranjará um corpo forte e
saudável.
— Nesse caso, Ellie? Ela escolherá Ellie!
— Mas, afinal, o que você sabe? — insurgiu-se Alice, abanando a cabeça, incrédula. —
Ellie é forte. Seria difícil. Não, os homens são muito mais fáceis. Especialmente um homem que
pensa sempre com o coração. Alguém capaz de se encolerizar sem sequer pensar.
— Jack?
— Será com certeza Jack. Pense o que seria ter o grande e forte Jack atrás de você. Mas o
livro está certo numa coisa. Um corpo recentemente possuído é mais fácil de dominar. Está
desesperado, mas igualmente desequilibrado.
Saquei do meu livro de notas e apontei tudo o que me pareceu importante. Alice não falava
tão rapidamente quanto o Mago, mas ao fim de algum tempo entrou no seu ritmo normal e não
tardou que me doesse o pulso. Quando chegou aos assuntos realmente importantes — como
lidar com os possessos — eram muitos os sinais de que a alma original ainda estava aprisionada
dentro do corpo. Por isso, se se ferisse o corpo, iria ferir também aquela alma inocente. Portanto,

destruir o corpo para se livrar do possessor era tão mau quanto assassinar.
Na verdade, aquela seção do livro foi decepcionante: não parecia possível fazer muito.
Sendo padre, o autor achava que um exorcismo, usando velas e água benta, era a melhor maneira
de arrancar o possessor e libertar a vítima, mas admitia que nem todos os padres o conseguiam
fazer e realmente bem só muito poucos. Parecia-me que alguns dos padres que o conseguiam
fazer seriam, muito provavelmente, sétimos filhos de sétimos filhos e essa era realmente a questão
importante.
Depois de tudo aquilo, Alice disse que se sentia cansada e foi-se deitar. Eu também estava
sonolento. Esquecera-me de quão árduo podia ser o trabalho na fazenda e estava dolorido da
cabeça aos pés. Uma vez no meu quarto, fiquei grato por cair na cama, ansioso por adormecer.
Mas, lá em baixo no pátio, os cães começaram a ladrar.
Pensando que algo os deveria ter alarmado, abri a janela e olhei para a Colina do Carrasco,
enchendo os pulmões do ar noturno para me acalmar e aclarar as idéias. Aos poucos, os cães
foram-se calando e acabaram por parar de ladrar definitivamente.
Quando ia a fechar a janela, a Lua saiu de trás de uma nuvem. O luar consegue mostrar a
verdade das coisas — segundo apurara por Alice — tal como a minha sombra grande dissera a
Lizzie dos Ossos que havia algo de diferente em mim. A Lua nem sequer estava cheia, era apenas
um quarto minguante diminuindo para um crescente, mas mostrou-me algo novo, algo que não
podia ser visto na sua ausência. À sua luz, vi um tênue rasto prateado que descia a Colina do
Carrasco. Passava por debaixo da vedação e estendia-se pela pastagem norte, depois atravessava o
campo de feno a leste até desaparecer de vista algures por detrás do celeiro. Pensei então em Mãe
Malkin. Vira o rasto prateado na noite em que a atirara ao rio. Eis agora aqui outro rastro que
parecia quase igual, e encontrara-me.
Com o coração a bater com força no meu peito, desci as escadas na ponta dos pés e
esgueirei-me pela porta de trás, fechando-a cuidadosamente atrás de mim. A Lua escondera-se
atrás de uma nuvem, por isso, quando dei a volta pela parte de trás do celeiro, o rasto prateado
desaparecera, mas continuava a haver nítidos indícios de que algo descera a colina em direção aos
anexos da nossa fazenda. A erva estava espalmada, como se um caracol gigante tivesse deslizado
sobre ela.
Esperei que a Lua reaparecesse para poder verificar a zona lajeada por detrás do celeiro.
Alguns momentos depois, a nuvem afastou-se e vi algo que me deixou realmente assustado. O
rastro prateado brilhava ao luar e a direção que tomara era inequívoca. Evitava o chiqueiro e
serpenteava pelo outro lado do celeiro num arco amplo até alcançar o extremo mais distante do
pátio. Depois, avançava na direção da casa, terminando mesmo por debaixo da janela de Alice,
onde o velho alçapão de madeira cobria as escadas para a cave.
Algumas gerações antes, o agricultor que vivera aqui costumava destilar cerveja que
fornecia às fazendas locais e até a algumas estalagens. Em virtude disso, as gentes locais
chamavam à nossa propriedade a “Fazenda do Cervejeiro”, muito embora nós lhe chamássemos
apenas “lar”. As escadas permitiam a entrada e saída dos barris de cerveja sem ser necessário
atravessar a casa.
O alçapão tapava ainda as escadas, um grande cadeado ferrugento a manter as duas
metades no lugar, mas havia um estreito intervalo entre elas, no lugar onde as extremidades da
madeira não uniam bem. O intervalo não seria maior do que o meu polegar, mas o rasto prateado
terminava exatamente ali e sabia que o que quer que deslizara até este ponto se conseguira
introduzir por aquele minúsculo intervalo. Mãe Malkin voltara e estava latente, o seu corpo
suficientemente mole e flexível para se esgueirar pelos intervalos mais estreitos.

Alcançara já a cave.
Presentemente não nos servíamos da cave, mas lembrava-me bastante bem dela. O chão era
de terra batida e estava cheio de barris velhos. As paredes da casa eram espessas e ocas, o que
significava que em breve ela poderia estar em qualquer lugar dentro das paredes, em qualquer
lugar na casa.
Olhei para cima e vi uma chama de vela tremular na janela do quarto de Alice. Ainda
estava de pé. Entrei em casa e, um momento depois, encontrava-me à porta do seu quarto. O
truque era bater apenas com força suficiente para Alice saber que era eu, sem acordar todos os
demais. Mas quando aproximei os nós dos dedos da porta, preparado para bater, ouvi um som
vindo de dentro do quarto.
Ouvi a voz de Alice. Parecia estar a conversar com alguém.
Não gostei nada daquilo, mas bati mesmo assim. Esperei um momento e, como Alice não
abrisse a porta, encostei-lhe o ouvido. Quem poderia estar conversando com ela no quarto? Sabia
que Ellie e Jack estavam já na cama e, fosse como fosse, só conseguia ouvir uma voz e esta era a
de Alice. No entanto, parecia diferente. Fez-me lembrar algo que ouvira antes. Quando
repentinamente me lembrei do que era, afastei a orelha da madeira como se me tivesse queimado
e recuei uma passada da porta.
A voz dela subia e descia, tal como a de Lizzie dos Ossos quando estivera debruçada sobre
o poço, segurando um pequeno osso branco de polegar em cada mão.
Antes mesmo de perceber o que fazia, agarrei no puxador, rodei-o e escancarei a porta.
Alice, abrindo e fechando a boca, entoava diante do espelho. Estava sentada numa cadeira
de espaldar, a olhar fixamente pela parte de cima de uma chama de vela para o espelho do
toucador. Respirei fundo, depois aproximei-me sorrateiramente para ver melhor.
Como estávamos na Primavera ali no Condado, depois de escurecer o quarto ficava um
pouco frio; não obstante, havia grandes gotas de suor na testa de Alice. Enquanto observava,
duas delas juntaram-se e desceram-lhe para o olho esquerdo e depois continuaram para a face,
como uma lágrima. Ela estava a olhar para o espelho, de olhos muito arregalados, mas quando
chamei o nome dela, nem sequer pestanejou.
Coloquei-me por detrás da cadeira e captei o reflexo do castiçal de latão no espelho mas,
para meu horror, o rosto no espelho por cima da chama não pertencia a Alice.
Era um rosto velho e enrugado, com cabelo crespo grisalho e branco a cair como cortinas
sobre cada face descarnada. Era o rosto de algo que passara muito tempo em solo úmido.
Os olhos moveram-se então, deslizando para a esquerda ao encontro dos meus. Eram
pontos vermelhos de fogo. Apesar de se ter estampado um sorriso no rosto, os olhos ardiam de
raiva e ódio.
Não havia dúvida. Era o rosto de Mãe Malkin.
O que se passava? Alice fora já possuída? Ou estaria de alguma forma a usar o espelho para
conversar com Mãe Malkin?
Sem pensar, peguei no castiçal e atirei a sua base pesada ao espelho, que explodiu com
grande estrondo, seguido de uma chuva cintilante e tilintante de vidro a precipitar-se. Quando o
espelho se estilhaçou, Alice soltou um grito sonoro e estridente.
Foi o pior grito que se possa imaginar. Estava cheio de tormento e lembrou-me o guincho
que um porco dá às vezes, quando o estão a matar. Mas não senti pena de Alice, muito embora
agora ela chorasse e puxasse os cabelos, os olhos arregalados e cheios de terror.
Percebi que a casa se enchera de repente de outros sons. O primeiro foi o choro da bebê de
Ellie; o segundo foi a voz cava de um homem a praguejar e blasfemar; o terceiro, botas grandes

descendo as escadas ruidosamente.
Jack irrompeu pelo quarto, furioso. Olhou para o espelho partido, depois avançou para
mim e levantou o punho. Acho que deve ter julgado que fora tudo culpa minha, porque Alice
continuava a gritar, eu segurava o castiçal e havia pequenos golpes nos meus dedos provocados
pelos estilhaços de vidro.
Ellie entrou no quarto mesmo a tempo. Trazia a bebe aninhada no braço direito e esta
chorava ainda a plenos pulmões, mas com a mão livre agarrou Jack e puxou-o até ele abrir o
punho e baixar o braço.
— Não, Jack — suplicou. — De que servirá isso?
— Não acredito que ele o tenha feito — bradou Jack, fuzilando-me com o olhar. — Sabe
quantos anos tinha aquele espelho? O que pensa que o pai vai dizer agora? Como se irá sentir
quando vir isto?
Não admira que Jack estivesse furioso. Já fora mau acordar toda a gente, mas aquela
mesinha de toucador pertencera à mãe do meu pai. Agora que ele me dera a caixa de mechas, era
a última peça que pertencera em tempos à sua família.
Jack deu dois passos na minha direção. A vela não se apagara quando eu partira o espelho,
mas começou a tremular quando ele gritou novamente.
— Porque fez isso? O que diabo te deu? — bradou.
O que podia eu dizer? Limitei-me a encolher os ombros, depois olhei para as botas.
— E, afinal, o que está fazendo neste quarto? — insistiu Jack. Não respondi. Tudo o que
eu dissesse só iria agravar a situação.
— A partir de agora, vê se não sai do seu quarto! — berrou Jack. — A minha vontade era
pô-los aos dois já daqui para fora.
Olhei para Alice, ainda sentada na cadeira, a cabeça nas mãos. Parará de chorar, mas todo o
seu corpo tremia.
Quando olhei para trás, a raiva de Jack dera lugar ao alarme. Olhava fixamente para Ellie,
que parecera subitamente vacilar. Antes que tivesse tempo de se mover, ela desequilibrou-se e
bateu na parede. Por uns momentos, Jack esqueceu-se do espelho enquanto acudia a Ellie.
— Não sei o que me deu — disse ela, toda agitada. — De repente senti a cabeça vazia. Oh!
Jack! Jack! Quase deixei cair a bebê!
— Não deixou e ela está bem. Não se preocupe. Pronto, eu agora pego-lhe...
Assim que teve a bebê nos braços, Jack acalmou. — Para começar, vai limpar toda esta
porcaria — ordenou-me. — Falaremos de manhã.
Ellie atravessou o quarto até à cama e apoiou a mão no ombro de Alice. — Alice, vem
comigo até lá abaixo enquanto Tom limpa o quarto — sugeriu. — Vou preparar uma bebida
para nós.
Momentos depois, tinham descido todos à cozinha, deixando-me a apanhar os cacos de
vidro. Passados cerca de dez minutos, fui também até lá buscar uma vassoura e uma vasilha de
metal. Estavam sentados à volta da mesa da cozinha a beber chá de ervas, a bebê adormecida nos
braços de Ellie. Não falavam e ninguém me ofereceu uma bebida. Ninguém olhou sequer na
minha direção.
Voltei para cima e limpei tudo o melhor que pude, depois regressei ao meu quarto. Sentei-
me na cama e olhei pela janela, sentindo-me assustado e sozinho. Estaria Alice já possuída?
Afinal, fora o rosto de Mãe Malkin que me olhara do espelho. Se sim, então a bebê e todos os
demais corriam verdadeiro perigo.
Ela não tentara fazer nada até ali, mas Alice era relativamente pequena comparada com

Jack, por isso Mãe Malkin teria de ser astuta. Esperaria que fossem todos dormir. Eu seria o alvo
principal. Ou talvez a bebê. O sangue de uma criança faria aumentar a sua força.
Ou eu partira o espelho mesmo a tempo? Teria eu quebrado o feitiço no preciso instante
em que Mãe Malkin se preparava para possuir Alice? Outra possibilidade era que Alice estivesse
apenas a falar com a bruxa, servindo-se do espelho. Mesmo assim, já era suficientemente mau.
Significava que eu tinha dois inimigos com que me preocupar.
Precisava fazer algo. Mas o quê? Enquanto estava ali sentado, com a cabeça a rodar,
tentando refletir sobre o assunto, ouvi uma pancada na porta do meu quarto. Pensei que fosse
Alice, de maneira que não fui lá. Depois uma voz chamou baixinho por mim. Era Ellie, por isso
abri a porta.
— Podemos falar aí dentro? — perguntou. — Não quero correr o risco de acordar a bebê.
Acabei de conseguir adormecê-la.
Anuí, Ellie entrou e fechou cuidadosamente a porta atrás de si.
— Está bem? — indagou, parecendo preocupada. Acenei com a cabeça, infeliz, mas não a
consegui encarar.
— Gostaria de me falar do sucedido? — perguntou. — É um rapaz sensato, Tom, e deve
ter tido um motivo muito forte para fazer o que fez. Talvez se sentisse melhor conversando.
Como podia contar-lhe a verdade? Quer dizer, Ellie adorava a bebê, por conseguinte, como
podia dizer-lhe que havia uma bruxa em algum lugar à solta na casa que gostava do sangue de
crianças? Percebi então que, por causa da bebê, ia ter de lhe contar alguma coisa. Ela precisava
saber até que ponto a situação era grave. Ela tinha de sair dali.
— Há uma coisa, Ellie. Mas não sei como lhe contar.
Ellie sorriu.
— O princípio seria um ponto tão bom como qualquer outro...
— Algo me seguiu até aqui — disse eu, olhando Ellie diretamente nos olhos. — Algo
pérfido que me quer fazer mal. Foi por isso que parti o espelho. Alice estava a falar com aquilo
e...
Os olhos de Ellie chisparam subitamente de raiva.
— Conte isso a Jack e pode ter a certeza de que vai sentir o seu punho! Quer dizer que
trouxe algo para cá, quando eu tenho uma bebê recém-nascida? Como pode? Como pode fazer
isso?
— Eu não sabia que isto ia acontecer — protestei. — Só o descobri esta noite. Por isso
estou te contando agora. Precisa deixar a casa e pôr a bebê a salvo. Vá agora, antes que seja tarde
demais.
— O quê? Neste momento? No meio da noite?
Anuí.
Ellie abanou a cabeça firmemente.
— Jack se recusaria a partir. Não aceitaria ser expulso da sua própria casa a meio da noite.
Por nada deste mundo. Não, vou esperar. Vou ficar aqui e rezar as minhas preces. Aprendi isso
com a minha mãe. Ela disse que se rezarmos realmente com intensidade, nada do escuro nos
poderá fazer mal. E eu acredito realmente nisso. E, depois, podia estar enganado, Tom —
acrescentou. — É jovem e ainda está a começar a aprender o ofício, portanto, pode não ser tão
mau quanto julgas. E a sua mãe deve voltar a qualquer momento. Se não esta noite, com certeza
amanhã à noite. Ela saberá o que fazer. Entretanto, mantenha-se afastado do quarto daquela
menina. Há algo que não está certo nela.
Quando abri a boca para falar, tencionando fazer mais uma tentativa para a persuadir a ir-

se embora, surgiu repentinamente uma expressão de alarme no rosto de Ellie e ela vacilou e
apoiou a mão na parede para evitar cair.
— Vê só o que arranjou. Sinto-me fraca só de pensar no que se passa aqui.
Sentou-se na minha cama e apoiou a cabeça nas mãos por alguns momentos, enquanto eu
me limitava a olhá-la, infelicíssimo, sem saber o que fazer ou dizer.
Ao cabo de alguns instantes, ela voltou a pôr-se em pé.
— Precisamos falar com a sua mãe assim que ela voltar, mas não se esqueça: até lá,
mantenha-se afastado de Alice. Promete?
Prometi e, com um sorriso triste, Ellie voltou para o seu quarto.
Só depois de ela sair é que se fez luz no meu espírito...
Era a segunda vez que Ellie cambaleava e dissera que sentia a cabeça vazia. Uma vez ainda
podia ser acaso. Apenas cansaço. Mas duas! Ela estava com tonturas. Ellie não tinha equilíbrio e
isso era o primeiro sinal de possessão!
Comecei a andar de um lado para o outro. Só podia estar enganado. Logo Ellie! Não podia
ser Ellie. Talvez ela estivesse apenas cansada. Afinal, a bebê quase não a deixava dormir. Mas
Ellie era forte e saudável. Fora criada numa fazenda e não era pessoa para se deixar abater pelas
circunstâncias. E toda aquela conversa de rezar... Devia tê-lo feito só para não provocar
desconfianças.
Mas Alice não me dissera que seria difícil Ellie ser possuída? Referira também que
provavelmente seria Jack, mas ele não evidenciara qualquer sinal de desequilíbrio. Mesmo assim,
era inegável que ele estava a ficar mesmo muito mal-humorado e agressivo também! Se Ellie não
o houvesse impedido, teria me arrancado a cabeça dos ombros.
Mas, é claro, se Alice estava de conluio com Mãe Malkin, tudo o que ela dissera poderia
destinar-se a despistar-me. Nem sequer podia confiar nas informações a respeito do livro do
Mago! Ela podia ter-me contado mentiras o tempo todo! Eu não sabia latim, por isso era
impossível verificar o que ela dissera.
Percebi que qualquer das hipóteses era possível. Dar-se-ia um ataque a qualquer momento
e eu não tinha como saber de quem partiria!
Com sorte, a minha mãe regressaria antes da aurora. Ela saberia o que fazer. Mas a aurora
ainda vinha muito longe, pelo que não podia permitir-me dormir. Tinha de ficar de vigia a noite
inteira. Se Jack ou Ellie estivessem possessos, não haveria nada que eu pudesse fazer a esse
respeito. Não podia entrar no quarto deles, por isso só me restava ficar de olho em Alice.
Fui lá para fora e sentei-me nas escadas entre a porta do quarto de Jack e Ellie e a do meu.
Dali conseguia ver a porta do quarto de Alice, mais abaixo. Se ela saísse do quarto, pelo menos
poderia dar o alerta.
Decidi que se a minha mãe não voltasse, me iria embora ao raiar do dia; para além dela, só
havia mais uma hipótese de ajuda...
Foi uma longa noite e, a princípio, sobressaltava-me ao menor som — um rangido nas
escadas ou um tênue movimento das tábuas num dos quartos. Mas, aos poucos, acalmei-me. A
casa era antiga e eu estava acostumado a ruídos daqueles — os ruídos que se espera ouvir quando
ela sossega e arrefece durante a noite. Todavia, com o aproximar da aurora, principiei a ficar
novamente inquieto.
Comecei a ouvir ruídos de raspadelas tênues vindos do interior das paredes. Pareciam
unhas a arranhar a pedra e não era sempre no mesmo lugar. Por vezes, era mais ao alto das
escadas, do lado esquerdo; outras em baixo, mais perto do quarto de Alice. Eram tão leves que
tinha dificuldade em dizer se estaria ou não a imaginá-los. Mas comecei a sentir frio, muito frio, e

isso avisou-me de que o perigo rondava.
Depois os cães começaram a ladrar e, passados alguns minutos, os outros animais ficaram
também enlouquecidos, os porcos peludos a guincharem tão alto que se pensaria que o matador
já chegara. Como se não bastasse, a barulheira fez com que a bebê recomeçasse a chorar.
Sentia agora tanto frio que todo o meu corpo era sacudido e tremia. Tinha de fazer alguma
coisa.
Na margem do rio, quando enfrentara a bruxa, as minhas mãos haviam sabido o que fazer.
Desta vez, sucedeu que as minhas pernas foram mais rápidas do que o pensamento. Levantei-me
e corri. Assustado e com o coração a bater descompassado, desci apressadamente as escadas,
fazendo ainda mais barulho. Só pensava em ir lá para fora e afastar-me da bruxa. Nada mais
importava. Toda a minha coragem se fora.