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Sobre a comunicação alternativa e tecnologias de apoio

por Lerparaver

Augusto Deodato Guerreiro
(Investigador e Professor no DCCATI, Director do MCATA, da ULHT)

A palavra inclusão começa a ouvir-se por todo o nosso país, com a dignidade e um notável empenhamento político, assumindo particular preponderância a comunicação e os programas políticos para a protecção dos direitos de cidadania das pessoas com necessidades especiais e respectiva inclusão aos mais diversos níveis.

Na realidade, comunicar é, antes de tudo, a permutabilidade de conhecimentos, reciprocidade intercompreensiva de mensagens apresentadas sob vários aspectos, legitimando o sentido e a condição de toda a vida social, sendo um processo essencial, não só da socialização, mas também da formação do indivíduo, na medida em que este adquire consciência de si próprio, interiorizando, exercitando e consolidando posturas e comportamentos nas trocas significacionais com os seus semelhantes. Comunicar, como fenómeno psicossociológico infinitamente complexo, é o móbil e a edificação do progresso na mais ampla e digna diversidade do engrandecimento humano, é (con)viver. Ninguém pode não-comunicar sob pena de sucumbir intelectualmente ou de se tornar num inepto e vegetante ser, razão por que ninguém pode viver em incomunicação.

Portugal debate-se actualmente com a ausência de alicerçadas estratégias científicas e a consequente implementação de objectivos e boas práticas ao nível da investigação das desvantagens ou condicionantes comunicacionais das pessoas com disfunções sensoriais e cognitivas, motoras e outras, o que lhes impede ou dificulta a inclusão social, cultural e profissional. Tal situação levou à criação e aprovação de um Mestrado em Comunicação Alternativa e Tecnologias de Apoio (MCATA) destinado a professores, sobretudo do ensino pré-escolar, básico e secundário, a licenciados que manifestem vocação para estes assuntos, investigadores e técnicos que desenvolvam ou que pretendam desenvolver investigações e práticas no campo genericamente designado por «estudos comunicacionais especiais e desenvolvimento cognitivo», na área das Ciências da Comunicação. Trata-se de um curso com a duração de dois semestres, a funcionar em horário pós-laboral a partir do próximo mês de Outubro, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT), no âmbito do Departamento de Ciências da Comunicação, Artes e Tecnologias da Informação (DCCATI), e que assenta na investigação aprofundada, desenvolvimento e aplicação das teorias, metodologias e práticas que alimentam:
1. Os estudos comunicacionais especiais, a didáctica comunicacional e o desenvolvimento cognitivo;
2. Os estudos e estratégias que visam sensibilizar e capacitar as diferentes organizações para a adequada comunicação com todos os cidadãos, independentemente das suas dificuldades e/ou desvantagens comunicacionais;
3. Os estudos de gestão funcional e operacional para a inclusão dos diferentes graus de dificuldade comunicacional, criando possibilidades de investigação e aplicações bi-direccionais para melhorar o desempenho global nos planos educacional e profissional das escolas regulares e especiais e das várias instituições, organizações e empresas, públicas e privadas, quer estas se orientem para o mercado, para o serviço público ou para as questões da solidariedade social;
4. A dinâmica investigacional decorrente das associações científicas reconhecidas mundialmente em grande parte da matéria, International Society for Augmentative and Alternative Communication e American Speech-Language Association (para além de outras), que integram a substância ampliativa do horizonte comunicacional, singularmente inovador em Portugal no que se refere ao estudo e enquadramento da especificidade comunicacional em referência, bem como a investigação aplicada em comunicação aumentativa e alternativa, também através do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT), do DCCATI, que inclui a área de investigação «Linguagens Especiais e Novas Tecnologias», que publica com regularidade os seus trabalhos nas revistas científicas e culturais editadas pelo DCCATI, como sejam a Revista “Caleidoscópio” ou os “Cadernos de Comunicação, Cultura e Tecnologia”.

A comunicação aumentativa e alternativa, e adequadas tecnologias de compensação e ampliação, é um domínio aprovado pela Portaria nº 324/2006, a concretizar pela ULHT. Assim, no sentido de se dotar o país de uma mais-valia científica, técnica e cultural e, até, de sensibilização pública para as prementes questões comunicacionais especiais inerentes às problemáticas da deficiência em geral, o Mestrado em referência cumpre um vasto leque de objectivos, salientando-se principalmente as seguintes estratégias para a sua concretização:
1) Estudar e aprofundar as questões relacionadas com as complexas problemáticas comunicacionais de pessoas que evidenciam dificuldades ou sobredotação nesses domínios, e desenvolver a ajustada investigação científica que estruture estratégias que garantam a viabilização de novos objectivos e de novas abordagens em comunicação aumentativa e alternativa e em tecnologias de apoio, investigando e promovendo a concretização do saber-fazer adequado a essa complexidade comunicacional na vida social;
2) Investigar, edificar e/ou diligenciar a instituição e aplicação de estratégias e objectivos para suprir as imensuráveis carências nacionais (quiçá por extensão lusófona e europeia) no que se refere à formação específica supra-referida, projecto assente em disciplinas laboratoriais, experimentais e teóricas sob a responsabilidade de especialistas de reconhecida competência científica e pedagógica, com larga experiência no ensino universitário e na formação profissional, capaz de proporcionar um ensino altamente qualificado e também de conduzir investigações em áreas privadas de boa investigação teórica e aplicada, estudando-se e desenvolvendo-se novas especialidades baseadas em estratégias, metodologias e técnicas de intervenção naquelas problemáticas comunicacionais, credibilizando e promovendo este tipo de investigação em Portugal.

Encontram-se na equipa docente deste Mestrado doutorados sobretudo em Ciências da Comunicação (incluindo a ampliação do paradigma comunicacional com a vertente tiflologia e tecnologização da tiflografia e da informação), Psicologia do Desenvolvimento (no plano da surdez e da surdocegueira), Relações Internacionais (com especial incidência na ecologia humana/educação inclusiva), Engenharia da Reabilitação («design web», informação e comunicação aumentativa e alternativa) e em Educação Especial e Reabilitação (no domínio da interacção mãe-criança e actividade simbólica em crianças com deficiência mental, competências comunicativas, inclusão e qualidade de vida). Estas áreas recobrem correspondentes especialidades científicas, reforçadas com o recurso permanente a um «laboratório de sistemas de comunicação aumentativa e alternativa», privilegiando a língua gestual e escritas alternativas na palma da mão, a comunicação pictográfica, o Braille aplicado à língua portuguesa e às diferentes grafias científicas e aplicação da língua gestual aos diversos ramos do saber.

No limiar do século XXI, o «século da comunicação», Portugal é pioneiro na criação e implementação de estratégias para uma comunicação total, não menosprezando nenhuma condicionante ou desvantagem comunicacional. Para facilmente se poder aferir a importância da iniciativa em referência, basta atentar nos números definitivos a que chegou o INE. Pelos últimos censos de 2001, Portugal possui uma população residente calculada em 10356117 (claro que hoje o número é superior), incluindo 636059 pessoas portadoras de deficiência (oficialmente já se fala em cerca de um milhão), sendo 163569 com deficiência visual, 156246 com deficiência motora, 84172 com deficiência auditiva, 70994 com deficiência mental, 15009 com paralisia cerebral e 146069 com outras deficiências. Só na zona da Grande Lisboa, cuja população residente se fixava em 1892891, registam-se 121858 cidadãos portadores de deficiência, sendo 30159 com deficiência visual, 27669 com deficiência motora, 19096 com deficiência auditiva, 10538 com deficiência mental, 2283 com paralisia cerebral e 32113 com outras deficiências. Infelizmente, estes números continuam a subir.

Pretende-se, na efectiva prática das relações sociais no centro da vida cultural e profissional para todos, que o acesso à informação, bases digitais e redes multimédia, passe a processar-se regularmente com o incremento e resultados da aplicação e exercício da comunicação aumentativa e alternativa e de toda a especificidade tecnológica de compensação e de ampliação. Neste sentido, havendo também a necessária preocupação em preparar o mais possível os mestrandos no «design web» nacional, na política e estratégias para a universalização de conteúdos digitais e na organização e sistemas de informação inclusivos, impõe-se:

. Proporcionar-lhes processos de investigação, estudo e desenvolvimento da concepção de conteúdos digitais acessíveis, tecnologias de apoio e serviços de apoio, que são três faces de uma mesma moeda, pois uma política de sucesso em prol da inclusão das pessoas com deficiência não sobreviverá sem um destes três elementos. A harmonia destes três elementos depende da normalização, da legislação e do «empowerment» que as pessoas com deficiência e as estruturas de apoio existentes conseguirem alcançar. Integradas nos produtos existentes no mercado, segundo o conceito de «Design for All», ou especialmente desenhadas para potencializar determinadas capacidades humanas específicas apresentando-se sob a forma de ajudas técnicas, as tecnologias estão a revolucionar a forma de acesso à informação, mas também ampliam a comunicação dando-lhe expressões alternativas e aumentativas para quem não possa falar, escrever ou ler.

. Habilitá-los, de forma aprofundada, sobre os meios de investigação, processos de aplicação e implementação das adequadas política e estratégias que garantam universalização na produção de conteúdos digitais, no sentido da sua utilização por todos os cidadãos, independentemente das suas dificuldades comunicacionais, pois é comum ler-se nos mais diversos documentos estratégicos definidores de políticas que a Sociedade da Informação oferece oportunidades únicas à inclusão das pessoas com deficiência. A digitalização da informação, a sua transformação de átomos em bits, constitui o elemento--chave de que a Sociedade Industrial não dispunha. O princípio da transformação harmoniosa subjacente às directrizes de acessibilidade à informação transformou uma utopia em realidade. Os elementos que constituem o multimédia - áudio, texto e imagem - gozam hoje da propriedade de se transformarem harmoniosamente entre si. O acesso à informação por multi-canais veio colocar em evidência que não existem apenas pessoas com necessidades especiais, mas equipamentos com necessidades especiais - a chamada «interoperabilidade» que tem como elemento-chave respeitar as diferenças. Há que equacionar estratégias e políticas que potenciem esta transformação evolutiva em benefício das pessoas portadoras de deficiência e com desvantagens comunicacionais.

. Fornecer-lhes conhecimentos teóricos e práticos da função organizativa nas diferentes instituições, organizações e empresas, destacando a importância das tecnologias e sistemas de informação que dão suporte inclusivo às actividades desempenháveis por todos os cidadãos, independentemente das suas disfunções comunicacionais, permitindo uma maior eficácia e produtividade, designadamente: na compreensão da dinâmica das organizações; no conhecimento das principais estratégias e metodologias de intervenção para organizar ou redimensionar processos de informação acessíveis; na análise da importância da qualidade de serviços de informação acessíveis; no entendimento da problemática dos sistemas de informação para todos; na distinção da gestão dos sistemas de informação e dos sistemas informáticos; na adequada interligação dos diferentes subsistemas organizacionais, incluindo as vantagens de utilização dos media numa dimensão amplamente inclusiva.

Tem havido, da parte da ULHT, no âmbito do seu DCCATI, um grande empenho, materializado na realização de profícuas reuniões com as instituições que, a nível nacional, mais se ocupam das problemáticas da deficiência e da inclusão social, de forma a que, em conjunto e com fundamentação nas necessidades nacionais, se decida sobre as melhores estratégias e políticas funcionais a prosseguir, o que se regista com êxito.

Com o Mestrado em referência, aprovado pelo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e enquadrado na política de inclusão actual do Governo e da Presidência da República, tem o nosso país a oportunidade de começar a ver implementadas estratégias científico-pedagógicas no plano da investigação e da realização de boas práticas comunicativas, de forma a preencher um grave e significativo «nicho», as contundentes necessidades dos cidadãos com desvantagens comunicacionais. Desta forma, o nosso país amplia o horizonte comunicacional para o (com)viver mais, em banda incomensuravelmente mais larga, numa natural e inclusiva «aculturação» e incentivadora da cultura da partilha e da parceria com a envolvência dos principais agentes de mudança, mesmo numa dimensão ciberuniversal.

Lisboa, 12 de Agosto de 2006